01 setembro 2009
josé gomes ferreira / a uma nuvem e a todas as nuvens (1939)
(Li este poema ao Manuel Mendes que
mo pediu para publicar na «Seara Nova».)
O sol abriu em asas
um charco de água podre
e uma nuvem surgiu
no silêncio da tarde.
Mas quem se atreve a ver no céu
um pântano a voar?
Quem procura no coração dos anjos
o sangue do lodo?
Quem tem a coragem de gritar aos deuses:
«Vi-os subir dia terra!»?
Ninguém, ninguém...
Todos te contemplam
como se caísses doutro céu mais longe
para chover nas bocas sequiosas
a esperança do pântano esquecido.
E bradar nos vales das montanhas
a cólera do pântano revoltado.
E molhar até aos ossos
a febre dos mendigos
que desprezam os charcos
mas imploram de joelhos,
num latim de lágrimas,
a tua água atravessada de céu.
Ó homens que chorais
perdidos nos desertos
a abrir sulcos de cobra e vento nas areias
com lágrimas de sede.
Prendei, prendei nos astros
os gritos dos relâmpagos
que não cabem nas bocas
dos homens de joelhos.
Olhai, olhai nas nuvens
as águias orgulhosas
a agonizar silêncio
em olhos de humildade.
Tremei, tremei de medo,
a rezar de mãos-postas
às vossas próprias lágrimas de angústia
com asas de tempestade.
Tapai, cegai o sol
Com mãos de névoa e súplica
para que o mistério do sonho
seja maior do que o homem.
E nas noites misteriosas
com esqueletos de frio
enforcados no luar,
lançai às estrelas
as almas transidas
para aquecê-las
em nuvens de cinzas...
… de rojo no chão sem reparar
que, na terra onde caís
a magoar os joelhos numa prece,
crepita uma chama
funda e sombria...
A sarça ardente das coisas vis
que tudo cria…
A pobre fogueira a arder na lama
que nos aquece...
Enquanto de joelhos,
com os olhos a voarem do corpo,
todos procuram no fumo
a explicação do fogo.
Todos, menos eu!
Eu que nas tardes viris do mundo
só olho para o céu
quando o azul é mais profundo
sem ilusões de nuvens.
E se tenho sede
debruço-me no lodo
para beber com orgulho
a água imunda dos lameiros
que andou pelas estrelas
mas voltou à terra
com o sabor a sangue
de todos os astros.
josé gomes ferreira
poeta militante 1º vol.
moraes editores
1977
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2 comentários:
Gostei!
O meu avô materno dedicou toda a sua vida as palavras e a escrita...
Era homónimo deste escritor.
Sónia (filha de Maria José)
Dactilógrafo era a sua profissão!
Sónia
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