31 maio 2025

italo calvino / as cidades e a memória

 
 
1.
 
Partindo-se dali e andando três dias para Levante o homem encontra-se em Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas pavimentadas a estanho, um teatro de cristal e um galo de ouro que canta no alto de uma torre todas as manhãs. Todas estas belezas o viajante já as conhece por tê-las visto também noutras cidades. Mas a propriedade desta é que quem lá chegar numa noite de Setembro, quando os dias já diminuem e as lâmpadas multicores se acendem todas ao mesmo tempo por cima das portas das lojas de peixe frito, e de um terraço uma voz de mulher grita: uh!, lhe apetece invejar os que agora pensam que já viveram uma noite igual a esta e que então foram felizes.
 
 
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999




30 maio 2025

primo levi / canto dos mortos em vão

 
 
 
Sentai-vos e negociai
À vossa vontade, velhas raposas grisalhas.
Iremos amuralhar-vos num palácio esplêndido
Com comida, vinho, boas camas e bom fogo.
Para que possais negociar e chegar a bom termo sobre
A vida dos nossos filhos e dos vossos.
Que toda a sabedoria da criação
Convirja para bendizer as vossas mentes
E vos guie no labirinto.
Mas lá fora ao frio, nós iremos esperar-vos,
O exército dos mortos em vão,
Nós os de Marne e de Montecassino,
De Treblinka, de Dresden e de Hiroshima:
E estarão connosco
Os leprosos e os tracomatosos,
Os desaparecidos de Buenos Aires,
Os mortos do Cambodja e os moribundos da Etiópia,
Os pactuadores de Praga,
Os exangues de Cálcuta,
Os inocentes massacrados em Bolonha.
Ai de vós se saís sem acordo:
Sereis cingidos ao nosso abraço.
Somos invencíveis porque somos os vencidos.
Invulneráveis porque já mortos:
Nós rimo-nos dos vossos mísseis.
Sentai-vos e negociai
Até que se vos seque a língua:
Se a ruína e a vergonha durarem
Iremos afogar-vos na nossa podridão.
 
14 de Janeiro, 1985
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 



29 maio 2025

pier paolo pasolini / à bandeira vermelha

 
 
 
 
Para quem só conhece a tua cor, bandeira
                                                     vermelha,
tu deves realmente existir para que ele exista:
quem se cobria de crostas cobre-se de chagas,
o trabalhador torna-se mendigo,
o napolitano calabrês, o calabrês africano,
o analfabeto um búfalo ou um cão.
Quem mal conhecia a tua cor, bandeira
                                                     vermelha,
está prestes a deixar de te conhecer, até com
                                                  os sentidos:
tu que já te gabas de tantas glórias burguesas
                                                  e operárias,
torna-te de novo trapo, e que o mais pobre te
                                                     desfralde.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




28 maio 2025

cesare pavese / eles estiveram lá

 
 
 
Lua terna e geada nos campos ao dealbar do dia
assassinam o trigo.
 
                            No plaino abandonado
aqui e ali putrefacto (é preciso tempo
para que o sol e a chuva sepultem os mortos),
era mesmo assim um prazer acordar e ver
se também a geada os cobria. A lua
inundava tudo, e alguns pensavam na manhã
em que a erva brotaria ainda mais verde.
 
Aos aldeãos que olham choram-lhes os olhos.
Este ano, quando o sol voltar, se voltar,
Só haverá folhinhas queimadas para segar.
Lua tenebrosa – só sabe comer as brumas,
e, em noites claras, as geadas são como dentada de serpente
que da verdura faz tanto estrume. Eles estrumaram
a terra; agora também o trigo ficará feito em estrume,
e não vale a pena olhar, e estará tudo ardido,
putrefacto. É uma manhã que deita abaixo um homem,
só de acordar e percorrer com os vivos
todos aqueles campos.
 
                                 Verão despontar mais tarde
algum tímido verdor na planura deserta,
sobre o túmulo do trigo, e terão de lutar
para o reduzir também a estrume pelo fogo.
Porque o sol e a chuva protegem só as ervas daninhas
e a geada, depois de queimar o trigo, não volta mais.
 
 
 
cesare pavese
antepassados
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997




 

27 maio 2025

fiama hasse pais brandão / do muro

 
 
 
Este muro avança com a estrada,
caminha para o cume e para o vale.
Se eu parasse junto dele, dir-me-ia:
aceito e recuso o movimento,
vou e não vou por vários horizontes,
sou e não sou infindamente.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




26 maio 2025

josé agostinho baptista / encontro

 



 

 
está sentado
ligeiramente inclinado para sul
e o olhar detém-se ao alto        à direita
nas amarelas planícies de van gogh       pintor
que muito o impressionara na sua agitada juventude.
 
continua sentado
ligeiramente inclinado para sul
adormecido nos pomares abundantes nas chuvas que
desde o outono passado humedecem a ilha
o rosto calmo
de uma serenidade permeável e consentida
e dorme ainda.
 
 
 
josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000
 



25 maio 2025

alexandre o'neill / amigos pensados: manuel

 
 
 
Manuel sai de amador às quatro para a pesca,
passa-me à porta, faz com a tosse o ponto e vírgula,
escarra como se fosse no país.
 
Com duzentos anzóis há quase sempre um peixe,
que nós conversamos quando, regressado,
Manuel abre a oficina e recomeça a mesa
que talvez acabe para mim.
 
 
 
alexandre o´neill
feira cabisbaixa 1965
poesias completas
assírio & alvim
2000
 




24 maio 2025

fernando assis pacheco / cuidar dos vivos

 
 
 
Como as ordens de Sebastião José
de Carvalho e Melo no terramoto
«cuidar dos vivos, enterrar os mortos»,
digo deste amor que tive
pior que terra sacudindo-se,
 
em que morri, matei, enchi a noite
de gemidos agudos sob as pedras
(onde era a rua, gente, Alfama, pombos),
Eugénio dos Santos para riscar Lisboa.
 
Porque é preciso agora cuidar dos vivos,
pôr os mortos no seu lugar:
que não tomem o lugar dos vivos.
Abrir as janelas ao sol de Maio,
beber o sol, beber Maio e a vida.
 
Moveu-se a terra, caíram casas, largou-se
o rio Teo por Lisboa dentro.
Ó amor sepultei-te, quero um amor
mais firme do que a terra, mais veloz que o vento
uma cidade nova nos meus olhos.
 
 
 
fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019




 

23 maio 2025

fernando luís sampaio / mínimo de existência



 
I
 
Chega a primavera com as folhas
Desavindas, o céu desatrelado invade
Trincheiras e monturos, aqui tu não vens,
Fechas os olhos para impedir
O peso do horizonte, o odor
Dos corpos que já não cantam,
Das mãos que pacíficas ainda
Trazem um pequeno lume, mas tu
Não vês, são pedaços reluzentes,
Montículos de mica sem boca e rosto.
Quando tudo terminar, mas nada termina
De verdade, sob
O silêncio destas ruas ficarão
Os nossos sonhos – e não voltes a falar
Do mar, nem das nuvens harmoniosas,
Porque a morte não é um vago vocábulo.
 
 
II
 
O teu corpo assim-sim
É uma galáxia compacta, sem saída
Ou entrada, uma espécie
De paisagem do que ficou,
Do que vai ficando
Do clamor das matinas.
És inteiro em partes iguais,
Como quem parte e reparte
E perde a melhor parte, e remendas
O erro com outro erro,
O teu mínimo de existência.
 
 
III
 
O que resta dos dias pardos
Vem bater à tua porta,
Qual mão espectral do destino.
A copiosa escuridão mete-se
A caminho, importuna a clareza do verso.
 
Sob o detrito da língua
Faísca o fio da espada.
 
 
IV
 
Um coração fechado só abre feridas.
Afinal do que falas?
O que dizes p’lo que fica
Por dizer?
Éramos muito jovens e a vida
Ainda nos desejava
Com muitas madrugadas e
A floração do desejo nas crinas
Marítimas – uma constelação inteira
A colapsar sobre nós.
Nenhuma memória é residência fiável.
Afinal, do que falas então?
 
 
 
fernando luís sampaio
nervo/24
colectivo de poesia
maio/agosto 2025
 



 

22 maio 2025

victor oliveira mateus / monólogo do estrangeiro

 
 
 
de milagres nada sei
nunca vi pão transformando-se em rosas
nunca ouvi vozes no alto da montanha
nem anjos à minha volta
tocando cítara
 
de milagres sei apenas o que li
em monges profetas santos
mas tudo me parecia exterior
longínquo mesmo
 
de milagres sei
no entanto
esta hipótese de ter podido ser nada
mas afinal todos os dias abrir os olhos
 
abrir os olhos e ver
árvores rios pessoas
enfim
este milagre imenso
que diariamente vou vivendo
o melhor que consigo
e sei
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021




21 maio 2025

maria f. roldão / imunidade




 

 
Salto aquela parte em que é
preciso lavar as mãos antes
 
do acto. Entro directamente
na parte das bactérias em
 
que o sujo é belo e a vida
não admite lavagens.
 
 
 
maria f. roldão
a cadeira de mogno
edição do autor
2025
 




 

20 maio 2025

tiago araújo / as maçãs prateadas da lua

 
 
 
os homens fumam cigarros consumidos. inteiros na dupla brisa alveolar. e as mulheres cantam por uma. chuva prateada de mercúrio. que multiplique os rostos. espelhados na gordura das gotas.
 
à luz laranja das garrafas de cerveja. as mãos guardam um mistério mais profundo. actuam lentas sobre as mesas. à luz que atravessa a roupa estendida os rostos. são mais suaves. escondem um segredo: a memória do sol; o esquecimento de serem maçãs prateadas da lua.
 
 
 
tiago araújo
fórmulas
quasi
2004




19 maio 2025

izidro alves / estratégia de guerra

 
 
 
Não tem importância
A camisa ensanguentada
Estendida no arame farpado
Mas tem.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025





18 maio 2025

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

 
 
 
4
 
por um pequeno buraco, como é costume, saio à superfície anónima da neve
um campo todo em si aberto um tanto à tua semelhança Tu que
não começas nem acabas Talvez um dia deixes de lado o mundo para passar
                                                                       [a outra coisa E nós
enquanto se faz tarde subimos as colinas num feérico assento
só para sentir a boa indiferença do vento
e as árvores que se afastam como arrastadas para outra noite
Tu que abriste os buracos do corpo E assim ficámos
surpresos por um rastro de gente na relva
 
ainda não é esta a devida maneira de dizer as verdadeiras coisas falsas Por exemplo
os nomes vários da luz do fim do dia
nós os mais velhos podemos exclamar acesos num entusiasmo e misturar
o passado com o futuro que só existe levemente ao lado
e adivinhar no silêncio dos barcos o disfarce do jovem herói
e bater com a sandália nas portas em sinal de grande impaciência
ainda assim continuaremos a esvaziar o poço com a canga nos ombros
senhores deste pequeno inferno de trazer pelo mundo
 
por cima o céu por mais que digam continua fixo excepto quando
na larga noite as estrelas se separam
lançadas pela pista lisa só as ouvimos cintilar
incoerentes
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996
 


17 maio 2025

herberto helder / fragmento do cairo

 
 
 
Quando eu a cinjo e ela me abre os braços,
sou como um homem que regressa da Arábia,
impregnado de perfumes.
 
                                               *
 
Desço o rio numa barca,
ao ritmo dos remadores.
Com um feixe de canas ao ombro,
vou para Mênfis,
e direi a Ptah, senhor da verdade:
«Dá-me esta noite a minha amada.»
Este deus é como um rio de vinho,
com seus maciços de canas.
E a deusa Sekmet é como se fosse a sua moita de flores.
E a deusa Earit, seu lótus em botão.
E o seu lótus aberto, o deus Nefertum.
- E a minha amada será feliz.
 
Levanta-se a aurora através da sua beleza.
Mênfis é um cesto de tomates
posto em frente do deus de rosto puro.
 
                                               *
 
Bom é mergulhar, bom,
ó deus meu amigo,
é banhar-me diante de ti.
Adivinhas-me, quando se molha
minha túnica de fino linho real.
E juntos entramos nas águas,
e à tua frente eu saio das águas,
agarrando entre os dedos
um estupendo peixe encarnado.
– Olha para mim.
 
                                               *
 
Tanto se alvoroça meu coração, de puro amor,
que metade da minha cabeleira se desfaz,
quando corro ao teu encontro.
 
 
Para que me vejas sempre igual e bela
diante de ti,
eu componho os meus cabelos.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
o bebedor nocturno (versões)
poemas do antigo egipto
assírio & alvim
1996





16 maio 2025

nuno júdice / preparativos de viagem

 
 
 
Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: o equador, uma linha
de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher a mala. Um pôr-do-sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
indecisa a meio da noite, a constelação
dos teus olhos quando os abres, e algumas
folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
me vem ditar. E se me disserem que tenho
excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
 e ficarei só com a tua imagem, a estrela
de um sorriso triste, e o eco melancólico
de um adeus.



nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024





 

15 maio 2025

gastão cruz / o tempo

 
 
 
Vivi onde as estrelas enegrecem
na luz intermitente
 
Intervalos longínquos
ocultaram do meu olhar o tempo
 
Desisto dele
um cadáver em chamas me vence
 
 
 
gastão cruz
as pedras negras
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




14 maio 2025

pedro tamen / num outro mar que desses morreria

 
 
 
Num outro mar que desses morreria
e não invejo, pois, a só migalha
que a mão que tens mais leve certo dia
a outros pelo vento cega e espalha.
 
A mim, amor, só cabe, qual convém
para o centro da terra, teu miolo;
e, mais, do que isso, a tua chaga-mãe,
a perfeita descida do teu colo,
 
o lado fora, e nele o imo expresso
nos acidentes líricos do leito
em que, de ter-te, só me tenho e esqueço.
 
Em nada tenho tudo, dito e feito,
e nisso tens a estrela que mereço
brilhando perto, ao fundo do teu peito.
 
 
 
pedro tamen
escrito de memória
os quarenta e dois sonetos (1973)
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995




 

13 maio 2025

antónio osório / e súbito na rua desfilaram

 
 
 
E súbito na rua desfilaram
os fatigados elefantes
e símios, bobos de bobos, anões
falsamente ledos, a trapezista
que me deu vontade de chorar,
aqueles seres, os palhaços, que traziam
o admirável grotesco dos homens,
os cavalos, brancos, já por sua idade
e a jaula viajante dos leões,
estendidos, expectantes como sáurios.
E por uma contorcionista,
que torturava o corpo,
apaixonei-me: enredada em mim,
como serpente, estava a sua alma.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
ponte velha
editorial presença
1982
 




12 maio 2025

fernando guerreiro / a fúria da razão

 
 
 
Diz-se que os cegos não conhecem a luz, talvez porque
para a razão o sentimento lhes reservou outros caminhos.
O melhor, contudo, é não acreditarmos nestas histórias.
É vê-los cair, arrastando na queda os instrumentos
de que se servem para nos entreter os sentidos.
também não se atrevem a atravessar florestas
e quando a chuva cai, choram convulsivamente.
Ratos devoram-lhes o cérebro e arrastam segredos
para o cemitério. Para que quereriam a luz?
mesmo quietos é difícil não perceber a violência.
Apenas uma fúria incomunicável que os legitima
por dentro. É sem palavras – ou imagens – o pensamento.
Quando juntos, abandonam as famílias – e riem-se
Se, à sua passagem, alguém lhes pede música.
 
 
 
fernando guerreiro
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002
 



11 maio 2025

amadeu baptista / o centro do mundo

 
 
13
 
A asa ferida da pequena perdiz
concilia-te agora com o poder do sol.
 
Sobre o centro da luz o curativo vinga
o absoluto abandono em que te encontrei.
 
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999






10 maio 2025

jorge melícias / são belos os instrumentos da minha morte

 



 
 
São belos os instrumentos da minha morte
nas suas mãos, a destreza da ira
sobre os trépanos, a forma
como o grito se abre de cânulas.
 
 
 
jorge melícias
incûbus
quasi
2004
 



09 maio 2025

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
 
CCLXXVI
 
Não fujas do teu medo procurando
a tua audácia. Isto é só vestir
com outra roupa o mesmo espanta pássaros.
Se dás um nome ao medo, dás-lhe sombras
onde melhor te esconde a natureza
verdadeira, a que importa. Vais mais fundo
não à sua raiz, mas às carências
que elas são a raiz, mas às carências
que elas são a raiz do conflito.
Aparências opostas do real,
Teu medo ou tua audácia nada são.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021
 



08 maio 2025

adília lopes / irmã barata, irmã batata

 
 
 
Fez-se do sexo um bicho de sete cabeças. Parece que mais vale morrer violada do que virgem, quando isso é um grande disparate. A castidade é um valor, infelizmente confunde-se castidade com ausência de relações sexuais e de masturbação. O sexo não é porco nem deixa de ser. Nada na vida dá a garantia de ser limpo nu liso inteiro. Nem aquele quartinho em que está o eu, um quartinho que seja seu, porque mesmo o eu é o outro. Às vezes tenho medo de me despir na rua e de falar muito alto. Chamo a isto o sentimento da irrealidade.
 
 
 
adilia lopes
irmã barata, irmã batata (2000)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004




07 maio 2025

adam zagajewski / a europa adormece

 
 
 
                                    para Gosia
 
 
A Europa adormece; em Lisboa
franzem as sobrancelhas velhos xadrezistas.
 
No céu de Cracóvia paira um nevoeiro cinzento
que apaga os contornos das veneráveis velas.
 
O Mediterrâneo embala-se suavemente
e daqui a pouco vai-se transformar numa canção de embalar.
 
Quando a Europa finalmente cair num sono profundo,
a América há-de velar
 
o pobre, mudo mundo
desconfiadamente, como uma irmã mais nova.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017




06 maio 2025

a. m. pires cabral / poeira

 
 
 
A poeira que a noite levantou
enquanto ardia
ainda anda no ar e é seca como
uma pistola disposta a disparar.
 
E tarde assentará
essa poeira.
 
Só espero que quando repousar
sobre o tampo da mesa
seja tão espessa que eu possa escrever nela
à ponta do dedo
alguns madrigais.
 
Ou então heresias, se estiver
para aí virado.
 
 
 
a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015




05 maio 2025

a. c. swinburne / um camafeu

 
 
 
Havia uma imagem esculpida do Desejo
     Pintada com sangue vermelho num campo de ouro,
     Passando entre os jovens e os velhos,
E a seu lado a Dor cujo corpo brilhava como o fogo,
E o Prazer com mãos descarnadas agarrando o seu salário.
     Com a mão esquerda, os dedos crispados e frios,
     Segurava-o a insaciável Saciedade,
Caminhando com pés descalços que tocavam a lama.
Os sentidos e as dores e os pecados,
     E os estranhos amores que sugam os seios do Ódio
Até que os lábios e os dentes mordam a sua profunda ferida,
Iam também, como animais batendo as asas ou as suas
                                                                barbatanas.
     A Morte mantinha-se afastada atrás de uma grade toda aberta,
Em cuja fechadura estava escrito: Talvez.
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria lourdes guimarães
relógio d’ água
2006




 

04 maio 2025

adolfo casais monteiro / fruta do tempo

 



 

 
Tempos houve em que ainda me perdia…
Hoje
de antemão tudo sonho já vivido,
inútil e pesado,
passos que dou com olhos distraídos…
isto mesmo não é embora certo:
que venha um pouco de sol, e toda a sombra
há-de esvair-se em bruma pelos cantos…
 
 
 
adolfo casais monteiro
poemas do tempo incerto (1934)
poesias completas
imprensa nacional-casa da moeda
1993




03 maio 2025

zetho cunha gonçalves / pelo meu nome

 
 
 
Escavo a esta mão os ventos – da onça,
sustentam a noite: quem contraceno em gesto,
e os seus olhos. Se dou um passo
tropeço noutro passo – simétrico, tropeço
na flecha. O dorso é todo o horizonte,
a sua escultura movediça.
 
Eu trazia o fogo na cabeça, era um pássaro.
O canto das águas seria a minha voz – a pedra,
Terra
de outra carne,
e osso –
não me houvessem roubado o fogo, não me houvessem
justificado em lenda, pelo meu nome.
 
 
 
zetho cunha gonçalves
o testamento do mundo
poemas reunidos 1979-2021
maldoror
2021
 



02 maio 2025

josé miguel silva / em suma

 
                                        
 
Um a um foram saindo de cena
os companheiros. Partiam, com a tarde,
para fins empobrecidos,
na rota dos eleitos para filhos e despesas.
As noites faziam-se livrescas,
estendiam sobre mim o seu império
de silêncios e desfalques.
 
Entretanto, engrossava o meu diário
de rasuras, de cálculos moídos,
partilhado por verrinas e recados
sem resposta. Bebia o desalento
por canecas de latão, corria
as persianas. É muito pouca sorte.
 
Os versos, com o tempo, tornavam-se mais longos,
cresciam para trás, para fora
dos cadernos, ocupavam minha vida
tal a morte na semente de madeira.
Afeiçoava-me isso sim à solidão, cortava
o negativo dos afectos, protegido na cabeça
por um chapéu de feltro;
pois essas são as coisas e as coisas
que ontem nos pareciam boas
não existem.
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003





01 maio 2025

josé emílio pacheco / «moralidades lendárias»

   
 
Odeiam César e o poder romano.
Privam-se de comer a última uvinha
pensando nos escravos estourados
nas minas de sal ou nas galeras.
 
Falam das crueldades do exército
em Ilíria e nas gálias.
Empanturrados
de javali, perdizes e vitela
bebem um gole
de vinho siciliano
para empinar os lábios pronunciando
as mais belas palavras:
a uuumaaaniiidaadee, o ooomeeem, todas essas
– tão rotundas, tão grandes, tão sonoras –
que apagam a humildade de outras mais breves
– como, digamos, por exemplo, as pessoas.
 
Termina a função. Entram os servos
para levarem os restos do banquete.
Então os patrícios acomodam-se
aos seus mantos de Chipre.
Com o fogo do prazer nos olhinhos,
como um gladiador que afunda o tridente,
enumeram felizes os abortos
de Clódia a Toscana,
a impotência de Lívio, os avanços
do cancro em Vitélio.
Afirmam que é cornudo o velho Cláudio
e condenam Flávio à cadeia,
um escravo liberto, um arrivista.
 
Depois à saída acordam aos pontapés
o cocheiro insolado
e marcham com fervor em direcção ao Palatino
para oferecerem mansamente o triste cu
ao magnânimo César.
 
 
 
josé emílio pacheco
irás y no volverás (1969-1972)
a árvore tocada pelo raio
antologia poética
trad. miguel filipe mochila
maldoror
2024