Onde iria, se pudesse ir, que seria, se pudesse
ser, que diria, se tivesse uma voz, quem é que fala assim, dizendo que sou eu?
Respondam simplesmente, haja alguém que responda simplesmente. É o mesmo desconhecido
de sempre, o único para quem existo, nas profundezas da minha inexistência, da
sua inexistência, da nossa, ora aí está uma resposta simples. Não é pensando
que me encontrará, mas que pode ele fazer, vivo e perplexo, sim, vivo, diga o
que disser. Esquecer-me, ignorar-me, sim, seria o mais sensato, é perito nisso.
Porquê esta súbita amabilidade após tanto abandono, é fácil de compreender, é o
que ele diz, mas não compreende. Não estou na sua cabeça, não estou em parte
nenhuma do seu velho corpo, e, no entanto, estou aqui, para ele estou aqui, com
ele, donde tanta confusão. Deveria contentar-se em ter-me reencontrado ausente,
mas não, quer-me aqui, com uma forma e um mundo, como ele, sem querer, eu que
sou tudo, como ele que não é nada. e quando me sente sem existência, é da sua
que ele me quer privado, e vice-versa, louco, louco, é louco. Na realidade anda
à minha procura para me matar, para eu estar morto como ele, morto como os
vivos. Sabe que é assim, mas não serve de nada saber, eu não sei, não sei nada.
Evita raciocinar, mas só raciocina, falso, como se isso pudesse ajudar. Julga
balbuciar, claro que balbucia. Conta a sua história de cinco em cinco minutos,
dizendo que não é sua, vejam lá a esperteza. Gostaria que fosse eu a impedi-lo
de ter uma história, claro que ele não tem história, mas será razão para querer
impingir-me uma? É assim que ele raciocina, passando ao lado, sim, sim, mas, o
que tem de se ver é passando ao lado de quê. Faz-me falar dizendo que não sou
eu, vejam só o exagero, obriga-me a dizer que não sou eu, a mim que não digo
nada. é grosseria a mais.
(…)
samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006