Enquanto ia o dia escurecia
foi de noite que te encontrei.
A ti, passarinheiro. No cinzento
entre cabos de tensão e guindaste
e o fantasma em arco-íris
das vigas a cinzel.
Na cadeira de pau negro e alto espaldar
estava o teu casaco. Subia sobre os móveis
o seu aroma de febre
onde tantas vezes antes que chegasses
escondi a cara que me parecia inchar de castração.
Voltando-me para a despedida
encontrei as lágrimas que mudavam em areia
as pálpebras, no escárneo do tempo findo.
Pior. Na certeza do tempo findo com
ainda mais tempo para sofrer o tempo,
o devaste da espera do fim.
Quando as cartas chegam (na fronteira mudada
em que já não nos lembra esse que se lembrou,
com aquelas palavras, de nós num anterior momento
em que o esquecíamos) um vitríolo afaga
a retina que perdeu mansamente a ternura.
Dizias que me fui embora sem nada mais te dizer.
E pensava eu que tinhas sido tu a ter partido.
Logros, nuvens inúteis, carregadas de água que
desaba
noutro lugar, inóspito, mais real.
Ao olhar o rosto definitivamente imóvel,
todo o sangue coagulado, uma pedra a desfazer-se,
esse objecto
medonho
ainda será o corpo pelo qual chorámos,
a quem trouxemos a última chávena, o último
comprimido, o último aterrado sorriso?
Alguma coisa nos afirma que é uma totalidade
diferente; que nada está ali; que não é
por aquilo a nossa dor.
Descobrimos que tudo quanto era partiu.
E o que seria? Então o corpo é a alma,
rapaz? A rebentação das artérias a crença final?
Potes de barro frísio e de latão,
dois pregos com uma trança de cebolas,
a máquina de moer café no lambril
da escada que sobe para o pátio,
poalha de farinha pelo chão.
A tua mãe tinha a testa descoberta,
os cabelos puxados para trás. Na fotografia.
Sobre a camilha forrada a estopa
segurava miolo de pão e com a esquerda
despejava para um alguidar uma caneca
de leite. O açúcar, os ovos, as compotas
estavam a meio do tampo; e numa cerca,
com um plástico na mão e o cabelo alvo
e a luz amarelecida, estavas tu
com a boca escancarada de choro,
os lábios ainda por formar.
joaquim manuel magalhães
sloten
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990