30 junho 2018

miguel curado /ensaio sobre este lado da loucura








não são daqui os desnortes mal escritos,
nem as vezes em que as pessoas se pintam
policromaticamente para comerem invisibilidade,
deste lado da loucura são os monstros que almoçam
água connosco,
e depois não bebem café porque te devoram num
trago...
assumimos todos que o mundo é diferente
da chuva amarela que pinta o chão de ouro,
mas nem saímos em passos arroxeados daqui,
escolhemos o luar desinteressado que nos acompanhará
até ao fim do mundo...


miguel curado
abrir os olhos até ao branco
in-finita
2018






29 junho 2018

antónio ramos rosa / da casa branca




*
Da casa branca
vê-se o mar
o fulvo dorso
da praia
nu

mulher de areia
deitada e panda
na frescura azul

                *
Uma vela branca
de minúcia fresca

dá ao olhar a brisa
dá ao silêncio o mar

                *
A mulher dorme
viva
na espuma
do silêncio



antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985







28 junho 2018

ruy belo / versos que vou escrevendo



Mas como pode ser inverno aqui na praia
perplexa perguntaste-me ó criança ainda vinda
não sei ao certo donde mas decerto não da vida
A praia que no verão tu conheceste
é calma é cor branca é céu azul é asa de ave
é tudo o que me falta agora porque então o tive
e ao ter alguma coisa só a tenho por correr o risco de a perder
Sou pato puro espaço para o sol que me soletra
um sol de inverno visto nalgum pátio das papoas
depois de ter papado algum almoço ao joão miguel
no requintado restaurante nau dos corvos
onde apesar de não haver éramos três
bebido o vinho todo de uma das garrafas
nos deixaram pagar as garrafas vazias que trouxemos
com o rótulo impresso desse caro restaurante
vizinho dessa nau aonde os desprendidos corvos
levantam voo do mais sólido aeroporto assim fazendo
um reclame tremendo desse mesmo restaurante
E cá vou eu escrevendo os meus ligeiros versos só durante
a ida a pé do joão miguel e da maria teresa
ao morro aonde deve ser romântico morrer
Mas eu fico no carro a escrever e a ler o jornal
como o fernandez prida quando o conheci
e convidei a ouvir ingenuamente certos discos
comprados pouco antes em andorra
E já de volta os dois e o jornal por ler
e os versos por escrever que grande porra
Ao longe um barco quase choca co’ a berlenga grande
a ilha onde tu criança do início tu que em vez de laranjeiras
sempre falas das árvores aonde principiam as laranjas
que vês sempre figuras se vês fumo por exemplo algum domingo
e aves nos papéis queimados que levantam voo
tu que dessas berlengas dizes ter gostado
dos barcos e dos goivos e das grutas
e eu rio porque até não querem lá saber as putas aprecio
e só não aprecio nenhum dos seus filhos
e menos aprecio quanto mais o são
eu cá dentro do carro enquanto não
chegam os dois consigo ler que no aniversário
de um certo jornal ao certo não sei qual
mandaram parabéns entre outros vários
nomes por certo muito conhecidos
a escritora agustina e a jornalista albertina
cujo nome termina pêlos mesmos apelidos mas não decerto
uma pessoa só porquanto a lista é bastante vasta
E leio ainda mais pois leio que também consta da lista
um tal Carlos almeida pugilista
útil por certo se um dia qualquer houver
algum problema sério a resolver
entre não sei talvez tipógrafos e administradores
Ao fim da lista vem a casa de repouso da enfermagem portuguesa
e outras profissões auxiliares de medicina
para já não falar está bem de ver desse museu de ovar
Deixo o jornal porque voltou a juventude
e por aqui me fico que mais querem fiz aquilo que pude
diverti-me a valer como naquele então
em que era novo e tinha inspiração e não
faltava como agora no meu céu a ave
mia soave edd’ora addio ó ângelo de lima
criança grande que por grande embora louca ninguém estima





ruy belo
nau dos corvos
todos os poemas II
assírio & alvim
2004







27 junho 2018

maria gabriela llansol / séculos a fio de chuva




198

_______________ séculos a fio de chuva
Ininterrupta, de pântanos e de frio criavam
No garoto um corpo tiritante dotado de uma
Agudíssima faculdade de observar. Se o coberto
Nunca secava, razão por que na sua língua não
Existia nem frio nem seco, e nada podia ser
Seguido por peugadas, onde pousara o inimigo
Seus sinais de passagem? Se ali vivesse um
Contador de histórias fulgurante, diria que
Ele estava banhado em lágrimas, em lágrimas
Totais. Mas eu _ o dom de escrevente que o
Seguia __ textuava, e textuava, um modo
De trazê-lo seco para um mundo de vida.
Apesar de mundo ser palavra supremamente
Ambígua, por constantemente se esbater
Se apagar.



maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003







26 junho 2018

henri michaux / morte de um pássaro




Tinha cores magníficas: era um carpinteiro.
Alvejei-o.
Ele pareceu hesitar, depois tombou sobre uma grande
                                                     folha de palmeira.
Agarrei-o. Era assim: ouro, negro, vermelho.
Apalpei-o, estendi-lhe as asa, examinei-o longa e minu-
                                          ciosamente. Estava intacto.
Deve ter morrido de comoção.



henri michaux
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997


25 junho 2018

mário cesariny / poema




Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos


mário cesariny
poemas de londres
pena capital
assírio & alvim
1999






24 junho 2018

eugénio de andrade / matéria solar


  

36

Pela manhã de junho é que eu iria
pela última vez.
Iria sem saber onde a estrada leva.

E a sede.




eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000










23 junho 2018

yorgos seferis / siroco 7 levante


                   A.D.I. Antòníu


Coisas que mudaram a forma do nosso rosto
mais fundo que o pensamento e mais
nossas tal como o sangue e mais
afundaram no brasido do meio-dia
por detrás dos mastros.

Entre as cadeias e as ordens
ninguém se lembra.

Os outros dias as outras noites
corpos, dor e prazer
a amargura da nudez humana despedaçada
mais baixa que as plantas do pimento por caminhos de poeira
com tantas fascinações e tantos símbolos
no último ramo;
na sombra do grande barco
sombra a memória.

As mãos que nos tocaram não nos pertencem, apenas
mais fundo, quando as rosas escurecem,
um ritmo na sombra do monte, grilos
humedece o nosso silêncio dentro da noite
procurando o sono do mar
deslizando para o sono do mar.

Na sombra do grande barco
quando rangeu o cabrestante
deixei o afecto aos agiotas.


Pélion, 19 de Agosto de 1935




yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993







22 junho 2018

saint-john perse / canção



*
Nascia um potro sob as folhas de bronze. Um homem pôs bagas amargas nas nossas mãos. Estrangeiro. Que passava. E eis que chegam rumores de outras províncias para meu agrado. «Eu vos saúdo, minha filha, sob a maior árvore do ano.»

*
Pois o sol entra em Leão e o estrangeiro pôs o dedo na boca dos mortos. Estrangeiro. Que ria. E que nos fala de uma erva. Ah! que arejamento nas províncias! Que descontracção nas nossas vias! como o trompete me delicia, e a sábia pluma no escândalo da asa!... «Minha alma, mulher feita, tínheis modos que não são os nossos.»

*
Nasceu um potro sob as folhas de bronze. Um homem pôs estas bagas amargas nas nossas mãos. Estrangeiro. Que passava. E eis um grande rumor numa árvore de bronze. Betume e rosas, dom do canto! Flautas e trovoada pêlos quartos! Ah! quanta descontracção nas nossas vias, ah! quantas histórias ao ano, e o Estrangeiro com os seus modos por todos os caminhos da terra!... «Eu vos saúdo, minha filha, sob o mais belo vestido do ano.»


saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016





21 junho 2018

rené char / esse fumo que nos levava…




Esse fumo que nos levava era irmão do pau que perturba a pedra e da nuvem que abre o céu. Não nos desprezava, acolhia-nos tal como éramos, delgados regatos alimentados de confusão e esperança, com um ferrolho nas mandíbulas e uma montanha no olhar.



         
rené char
furor e mistério
os leais adversários
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000












20 junho 2018

leonor castro nunes e marcos foz / a bifurcação dos ossos




26.

I wonder about the love you can´t find
And I wonder about the loneliness that´s mine
isto num colchão a mil quilómetros
de lonjura perdoável.

Mais fósforo menos fósforo
e um dia fica só o lugar da cama
onde amámos a passagem da luz
de ponta a ponta
e fomos amealhando o crédito
a julgar que nos bastaria para tanto;
um gelado de baunilha um concerto nas escadas
de uma cidade que nos recebesse.



leonor castro nunes
e  marcos foz
a bifurcação dos ossos
do lado esquerdo
2016









19 junho 2018

isabel meyrelles / será a paz, será a guerra?




Será a paz, será a guerra?
Cada um sabe de que inferno vem,
saído da casca de manhã
entre dois braseiros mortais
a regra do jogo é caminhar de mão vazias
a morte dos cisnes é uma aventura sem amanhã
à sombra das pálpebras do deserto
os girassóis viraram-me as costas
relinchando de um terror empoeirado
aquilo que assobia aos meus ouvidos não tem nome
mas eu reconheço-o pelo que ele é
icebergue de sangue
uivando à lua.

Julho, 1985



isabel meyrelles
poesia
le messager des réves (o mensageiro dos sonhos)
tradução de vítor castro
quasi
2004







18 junho 2018

manuel antónio pina / a um homem do passado




Estes são os tempos futuros que temia
o teu coração que mirrou sob pedras,
que podes recear agora tão fundo,
onde não chegam as aflições nem as palavras duras?

Desceste em andamento; afinal era
tudo tão inevitável como o resto.
Viraste-te para o outro lado e sumiram-se
da tua vista os bons e os maus momentos.

Tua ainda tinhas essa porta à mão.
(Aposto que a passaste com uma vénia desdenhosa.)
Agora já não é possível morrer ou,
pelo menos, já não chega fechar os olhos.


manuel antónio pina
voyager
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012






17 junho 2018

bernardo soares / assim soubesses tu compreender o teu dever…




Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios. Talhares os teus gestos nos sonhos, para que fossem apenas janelas abertas para paisagens puras da tua alma. De tal modo arquitectar o teu corpo em arremedos de sonho que não fosse possível ver-te sem pensar n'outra coisa, que lembrasses tudo menos tu própria, que ver-te fosse ouvir música e atravessar, sonâmbulo, grandes paisagens de lagos mortos, vagas florestas silenciosas perdidas no fundo d'outras épocas, onde invisíveis homens diversos vivem sentimentos que não temos.

Eu não te quereria para nada senão para te não ter. Queria que, sonhando eu e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando — nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enchera de (...) os lagos mortos e que ecos de canções ondeavam subitamente na grande floresta inexplícita, perdida em épocas impensáveis.

A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligando as duas margens escuras do rio que vai ter ao mar — ao mar onde as caravelas são novas para sempre.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
europa-américa
1986







16 junho 2018

edgar allan poe / a queda da casa de usher



O meu coração é um alaúde suspenso:
Mal se lhe toca, ressoa.

De Béranger


Durante um dia inteiro de Outono, dia fuliginoso. Sombrio e mudo, em que as nuvens eram pesadas e baixas no céu, eu atravessava sozinho e a cavalo uma extensão de terra singularmente lúgubre e, enfim, como se aproximavam as sombras da noite, achei-me à vista da melancólica Casa de Usher. Não sei como isto aconteceu – mas, logo ao primeiro olhar que deitei ao edifício, um sentimento de tristeza inultrapassável penetrou-me a alma. Disse inultrapassável porque tal tristeza não era, de modo nenhum, temperada por uma parcela daquele sentimento cuja essência poética cria quase uma volúpia e cuja alma se queda, geralmente, fixa, em face das imagens naturais mais sombrias da desolação e do terror. Fitava o quadro posto à minha frente e, só por ver a casa e a perspectiva característica deste domínio – as paredes que tinham frio – as janelas parecidas com olhos distraídos – alguns ramalhetes de juncos vigorosos – alguns troncos de árvores brancos e definhados – sentia este completo abatimento de alma que, entre as sensações terrestres, não se pode comparar melhor do que ao devaneio oculto do comedor de ópio – ao seu retorno dilacerado à vida diária – à horrível e lenta retirada do véu. Era gelo no coração, um abatimento, um mal-estar – uma irremediável tristeza de pensamento que nenhum agulhão da imaginação podia reanimar nem fazer crescer. O que era, pois – detive-me para pensar nisso – , o que era, pois, esse não sei o quê que assim me enervava ao contemplar a Casa de Usher? Era um mistério completamente insolúvel, e não podia lutar contra os pensamentos tenebrosos que se amontoavam sobre mim enquanto reflectia. Fui forçado a refugiar-me nesta conclusão pouco satisfatória: que existem combinações de objectos naturais muito simples que têm a força de nos afectar deste modo e que a análise desta força reside em considerações onde perderíamos o pé. Era possível, pensava, que uma simples diferença na disposição dos materiais de decoração, dos pormenores do quadro, bastasse para modificar, para aniquilar talvez essa força de impressão dolorosa: e agindo em conformidade com esta ideia, conduzi o cavalo para a borda escarpada  dum lago negro e lúgubre que, espelho imóvel, se estendia em frente do edifício; e fitei – mas com um arrepio ainda mais penetrante do que da primeira vez – as imagens repercutidas e invertidas dos juncos pardacentos, dos troncos de árvores sinistras e das janelas parecidas com olhos sem pensamento.
(…)



edgar allan poe
a queda da casa de usher
trad. de joão costa
editores associados
1973







15 junho 2018

fernando pinto do amaral / escotomas




1.
Uma janela aberta: para lá
do espaço vibra o gelo
e dentro desse gelo vibra o lume
de um súbito segredo cujo sangue
escorre por mim até iluminar
o prazer e a dor
com a mesma certeza. Um relâmpago
liberta e faz pulsar a minha estranha
primeira alma,
essa verdade limpa de memórias,
gravada em milhões de olhos, sempre lá,
no céu da noite, sobre as cintilantes
veias de uma cidade – sobre mim
uma palavra aberta, ainda
antes do tempo,
à flor dos lábios de Deus.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997