16 junho 2018

edgar allan poe / a queda da casa de usher



O meu coração é um alaúde suspenso:
Mal se lhe toca, ressoa.

De Béranger


Durante um dia inteiro de Outono, dia fuliginoso. Sombrio e mudo, em que as nuvens eram pesadas e baixas no céu, eu atravessava sozinho e a cavalo uma extensão de terra singularmente lúgubre e, enfim, como se aproximavam as sombras da noite, achei-me à vista da melancólica Casa de Usher. Não sei como isto aconteceu – mas, logo ao primeiro olhar que deitei ao edifício, um sentimento de tristeza inultrapassável penetrou-me a alma. Disse inultrapassável porque tal tristeza não era, de modo nenhum, temperada por uma parcela daquele sentimento cuja essência poética cria quase uma volúpia e cuja alma se queda, geralmente, fixa, em face das imagens naturais mais sombrias da desolação e do terror. Fitava o quadro posto à minha frente e, só por ver a casa e a perspectiva característica deste domínio – as paredes que tinham frio – as janelas parecidas com olhos distraídos – alguns ramalhetes de juncos vigorosos – alguns troncos de árvores brancos e definhados – sentia este completo abatimento de alma que, entre as sensações terrestres, não se pode comparar melhor do que ao devaneio oculto do comedor de ópio – ao seu retorno dilacerado à vida diária – à horrível e lenta retirada do véu. Era gelo no coração, um abatimento, um mal-estar – uma irremediável tristeza de pensamento que nenhum agulhão da imaginação podia reanimar nem fazer crescer. O que era, pois – detive-me para pensar nisso – , o que era, pois, esse não sei o quê que assim me enervava ao contemplar a Casa de Usher? Era um mistério completamente insolúvel, e não podia lutar contra os pensamentos tenebrosos que se amontoavam sobre mim enquanto reflectia. Fui forçado a refugiar-me nesta conclusão pouco satisfatória: que existem combinações de objectos naturais muito simples que têm a força de nos afectar deste modo e que a análise desta força reside em considerações onde perderíamos o pé. Era possível, pensava, que uma simples diferença na disposição dos materiais de decoração, dos pormenores do quadro, bastasse para modificar, para aniquilar talvez essa força de impressão dolorosa: e agindo em conformidade com esta ideia, conduzi o cavalo para a borda escarpada  dum lago negro e lúgubre que, espelho imóvel, se estendia em frente do edifício; e fitei – mas com um arrepio ainda mais penetrante do que da primeira vez – as imagens repercutidas e invertidas dos juncos pardacentos, dos troncos de árvores sinistras e das janelas parecidas com olhos sem pensamento.
(…)



edgar allan poe
a queda da casa de usher
trad. de joão costa
editores associados
1973







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