Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres
meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos
devaneios. Talhares os teus gestos nos sonhos, para que fossem apenas janelas
abertas para paisagens puras da tua alma. De tal modo arquitectar o teu corpo
em arremedos de sonho que não fosse possível ver-te sem pensar n'outra coisa,
que lembrasses tudo menos tu própria, que ver-te fosse ouvir música e
atravessar, sonâmbulo, grandes paisagens de lagos mortos, vagas florestas
silenciosas perdidas no fundo d'outras épocas, onde invisíveis homens diversos
vivem sentimentos que não temos.
Eu não te quereria para nada senão para te não ter.
Queria que, sonhando eu e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda
sonhando — nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enchera de
(...) os lagos mortos e que ecos de canções ondeavam subitamente na grande
floresta inexplícita, perdida em épocas impensáveis.
A visão de ti seria o leito onde a minha alma
adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim
mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligando as
duas margens escuras do rio que vai ter ao mar — ao mar onde as caravelas são
novas para sempre.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.I
europa-américa
1986
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