09 abril 2008

carta da infância





Amigo Luar:


Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te ouço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.







carlos oliveira
trabalho poético
sá da costa
1998





07 abril 2008

tu anseias?!






- Alguma vez anseias?
- Se anseio?!... Se eu anseio?
- Eu anseio.
- Tu anseias?!
- Anseio, pois!... Muitas vezes sento-me e anseio!... Já ansiaste?
- Recentemente, não. Suspirei. Passo o tempo a suspirar. Estou sempre a suspirar!... Mas não ansiei.
- Olha para ti.
- Kramer, não comeces.
- Estás a desperdiçar a tua vida.
- Não estou nada. Aquilo a que chamas desperdiçar eu chamo viver. Estou a viver a minha vida.
- Ah, estás?! Tudo bem. Diz lá!... Tens emprego?
- Não.
- Tens dinheiro?
- Não.
- Tens uma mulher?
- Não.
- Tens perspectivas?
- Não!
- Tens alguma coisa no horizonte?
- Não.
- És minimamente activo?
- Não!
- Tens alguma razão imaginável para te levantares de manhã?
- Gosto de comprar o Daily News.
- George, está na altura de crescermos… e de nos tornarmos homens. Deixarmos de ser catraios.
- Porquê?
- Vou para a Califórnia. Estou com o bichinho.
- Parece que também estou a sentir qualquer coisa.
- Com o bichinho de actor. Desde que entrei no filme do Woody Allen.
- “Estes pretzles dão-me sede” ?! Foi uma deixa. Foste despedido.
- Eu sei, eu sei, mas, caramba nunca me senti tão vivo. Vens comigo?
- Não, não vou.
- Certo, como queiras, mas isto que fique aqui entre nós. Agora, somos irmãos de chave.
- Não vais mesmo para a Califórnia, pois não?
- Aqui… na cabeça, já fui.






seinfeld
diálogo entre kramer e george costanza
episódio 23
jerry seinfeld, carry charles
trad. Isabel monteiro, ideias & letras
sic radical


31 março 2008

andre breton e paul éluard / o nascimento



O cálculo das probabilidades confunde-se com a criança, negro como a mecha de uma bomba posta na passagem de um soberano que é o homem por um anarquista individualista da pior espécie que é a mulher. O nascimento, tirando isto, não é mais que uma rotunda. Uma tal auréola aplicada ao filho do homem e da mulher não corre o risco de que possam parecer menos insípidos os cueiros de rato que lhe prepararam e o berço como um esgoto onde o despejam com a água suja e o sal da tolice que permitiu esperar a sua vida como a de uma fénix obediente.
O vizinho afirma que ele é feito à imagem do fogo de lenha, a vizinha que não o podem comparar melhor que ao aspecto dos aeroplanos e a fada degenerada que fixou domicílio na cave inclina-se a dar-lhe como antepassado o gipso em ferro de lança que tem um pé na ociosidade e o outro no trabalho.
Para todos, ele traz em si as suas promessas. Cada um quer aprender a sua língua filial e interpreta o seu silêncio. Diz-se em toda a parte que com a sua presença favorece um mundo que já não podia passar sem ele. É o agulheiro de gatinhas, aquele que provoca com certeza o descarrilamento com panorama de ponte, celebrado pelo Petit Journal Illustrè. Traz em medalhão o salvamento, «Papá» é um disco em forma de lua, «Mamã» é côncava agora como a baixela.
Para suspender o efeito de uma presença tão obstinada como a do vaso de latão sobre a chaminé de salitre, um raio de mel veio esconder-se no quarto. Todos os cumprimentos do uso foram inúteis. Não há ninguém aqui. Nunca aqui existiu alguém.






andre breton e paul éluard
a imaculada concepçãotradução franco de sousa
estúdios cor
1972



26 março 2008

esta folha que eu abro não é para ti






Esta folha que eu abro não é
para ti. Veio dos imaginados desertos
da memória, trouxe-a a esta claridade
como quem a não queria aguar.
Folhas de deserto: o acaso das palavras
feriu-a nas gaiolas urbanas.







helder moura pereira
sião
antologia
org. al berto, paulo da costa domingos e rui baião
frenesi
1987






25 março 2008

o meu tempo (1960-1993)






Agora as pessoas
não sabem morrer
estar doentes
sofrer
ter prazer
tocar-se
dantes também não
(Ó mais nu
e branco dos homens)









adília lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004




15 março 2008

hugo van hofmannsthal / balada da vida exterior






E crianças crescem com olhos fundos,
Que nada sabem, crescem e logo morrem,
E toda a gente segue o seu caminho.

E frutos doces saem dos amargos
E caem de noite, pássaros mortos,
E ali ficam uns dias e apodrecem.

E o vento sopra sempre, e sempre nós
Ouvimos, dizemos muitas palavras
E sentimos prazer, membros cansados.

E estradas cortam campos, e lugares
Há-os aqui e ali, com luzes, árvores, lagos,
E ameaçadores, secos, já mortos…

Quem os ergueu? Para quê? Nenhum é igual
Aos outros. E são tantos, não têm fim…
Que mão nos manda riso, choro, pavor?

De que serve tudo isso e estes jogos,
A nós, já grandes e eternamente sós
E sem buscar um fim nesta jornada?

De que serve ter visto tanta coisa?
E afinal muito diz quem só diz «noite»,
Palavra de onde escorre triste melancolia

Como mel espesso de favos vazios.







hugo van hofmannsthaláustria (1874-1929)
trad. joão barrento
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001






11 março 2008

tranches de savoir



*

Não se vêem vírgulas entre as casas, o que torna tão difícil a sua leitura e as ruas tão cansativas de percorrer.
A frase nas cidades é interminável. Mas fascina, e os campos são abandonados pelos trabalhadores outrora corajosos que agora querem inteirar-se por si próprios do texto admiravelmente retorcido, de que toda a gente fala, tão difícil de seguir, não raro impossível.
Embora tentem fazê-lo, esses trabalhadores opiniosos, andando sem cessar, lambem à passagem as doenças dos esgotos e a lepra das fachadas, mais do que o sentido que continua oculto. Drogados de miséria e de fadiga, deambulam em frente das montras, desviando-se por vezes do seu intuito, a sua busca nunca… e assim se perdem os nossos bons campos.







henri michaux
(fatias de sabedoria, 1950)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999


de cima, de antes, de mais fundo






de cima, de antes, de mais fundo
me suspendo, de um jardim, de um espelho
em reflexão, de um automóvel em corrida,
de mais fundo me suspendo, internamente,
de antes, de cima. do mais fundo estado,
como um dente a entrar no alimento,
como um rio a entrar no estado sólido,
reconditamente entro, reconcentro
os vários sítios do meu centro,
em reflexão.






luiza neto jorge
o seu a seu tempo
poesia
assírio & alvim
1993




08 março 2008

as origens da arte moderna




Foi no Salão dos Recusados de 1863, à margem do Salão oficial da Academia, que alguns pintores jovens, que viriam a ser os impressionistas, tiveram consciência das suas aspirações comuns. O Almoço na Relva de Manet, tinha causado escândalo. O público indignava-se perante essa arte viva que, todavia, se limitava a retomar moderadamente um velho tema clássico querido a Giorgione e a Ticiano. Se o termo «impressionismo» surgiu na boca dum jornalista trocista a propósito duma tela de Claude Monet, Impressão, Sol Nascente, pode realmente definir a estética que corresponde aos acontecimentos sociais, culturais e científicos cerca de 1870. O futuro pertencia à ciência; as grandes invenções sucediam-se: Bell descobria o telefone, Edison, a lâmpada de incandescência, Pasteur, as leis da assepsia; as linhas de caminho de ferro multiplicavam-se. Uma vez que a invenção da fotografia punha ao alcance de todos a reprodução fiel do mundo visível, tornava-se necessário ir mais longe do que o realismo de Courbet. Por outro lado, as pesquisas de Chevreul no domínio da óptica e da cor mostravam que a luz se dividia em cores fundamentais, as quais eram registadas na retina segundo determinadas leis, pois os olhos apenas detectam manchas luminosas modeladas pela cor.

Assim, os pintores impressionistas, para captarem melhor a realidade óptica essencialmente luminosa e momentânea, acabaram por se interessar principalmente pela natureza, pela luz incessantemente mutável da paisagem, pelos espectáculos mais fugidios: as reverberações da água, as nuvens. Abandonando o atelier, instalando-se ao ar livre, aplicam a cor pura com pequenas manchas separadas, reconstituindo assim toda a luminosidade e movimento das coisas. Entretanto, Manet desconfia do «ar-livi-ismo»; já sabemos que ele gosta do jogo dos negros e dos brancos, dos mistérios da sombra e da luz, dos cinzentos. A procura dos tons puros feita pelos seus amigos impressionistas nunca o afastará dessas preferências. A Olímpia é uma variação sobre o claro-escuro; a pincelada fluida brinca nos brancos quentes da pele, no marfim do xaile e no branco azulado do lençol. As diversas texturas são apenas sugeridas; o artista não procurava indicar todos os fios do tecido. Uma pintura tão fresca, tão clara e tão directa teria que ofuscar a Academia, a qual considerava o quadro apenas como um esboço.

Contudo, esta obra-prima tratava um assunto frequentemente exposto nos Salões, o nu; mas os nus oficiais eram adocicados e idealizados, enquanto o de Manet é duro e realista; a carne parece viva e sólida, ao passo que os pintores tradicionais parecia que enchiam os modelos com algodão. Além disso, os nus académicos, sempre alegóricos, eram impessoais, pretendendo representar a Verdade, a Primavera ou a Alvorada, enquanto o de Manet é individualizado e, nessa época, identificável, pois é o retrato dum modelo profissional muito conhecido.

Vinte anos depois, n’ O Bar do Folies Bergére, Manet leva mais longe a simplificação das formas. As garrafas do bar são indicadas com uma série de pinceladas ousadas; Manet mostra apenas o essencial. O seu realismo óptico nunca é fotográfico. Implica uma selecção, uma escolha de pormenores vaporosos que não tem nada de comum com a precisão, forçosamente objectiva, da fotografia dessa época. Por maior que seja o interesse de Manet pelos fenómenos ópticos, o artista nunca se esquece de que é pintor, dispondo-se a sacrificar a realidade visual à composição. Atrás da criada, um espelho reflecte a sua imagem e a dos clientes sentados. Ora, sob o ponto de vista do realismo, é evidente que ninguém que se encontrasse diante da criada poderia ver todas essas imagens. Manet escolheu, pois, arbitrariamente, várias ópticas diferentes para intensificar a impressão que nos quis dar.

Separadamente, os temas tratados pelos impressionistas não têm talvez importância, mas, considerados em conjunto, traduzem a vida da época. Pessoalmente, Manet era bastante venturoso. Preferiu muitas vezes reconstruir os modestos divertimentos campesinos dos parisienses; mas retratou também outros, mais mundanos. As diversões campestres, como actualmente os fins-de-semana no campo, faziam na altura a alegria de muitos citadinos. Os pintores evocavam esses pequenos prazeres junto do rio, os passeios de barco e o sossego dos campos. Manet e outros gostavam também de mostrar os teatros, os passeios públicos, as salas de dança e os hipódromos, divertimentos preferidos da boa burguesia.

Claude Monet (1840-1926) é o verdadeiro corifeu do movimento impressionista. Formou-se junto de Boudin, Jongkind e Courbet. Em 1870, refugiou-se da guerra em Londres, na companhia de Pissarro e Sisley. A qualidade particular da luz londrina exerceu nos três artistas uma fascinação extraordinária que determinou o destino do Impressionismo. A luz brumosa e difusa que dilui os contornos correspondia às suas pesquisas. Apesar da sua precisão atmosférica, as paisagens de Monet têm uma grande beleza lírica. Um profundo amor à natureza impregna a sua obra, transcendendo o aspecto objectivo . A composição é tão livre que parece fortuita, e a rapidez da pincelada fez com que as pessoas da época dissessem que eram apenas esboços. Monet acabou por não ver no mundo senão um efeito de perpétuos movimentos luminosos .

Ninguém levou tão longe o estudo da luz como Monet. Pierre Auguste Renoir (1841-1919) divide os tons nas suas paisagens, mas parece estar menos apaixonado pelos problemas da atmosfera e da luz. Importa-lhe, principalmente, a figura humana, de preferência feminina. N’ O Baile no Moulin de la Galette, representando um lugar onde se dança ao ar livre, utiliza-se pouco a cor dividida. Todavia, encontra-se o gosto impressionista pela luz nos raios de sol filtrados pelas folhas das árvores e salpicando as caras e os vestidos azuis das mulheres. E o que desconcerta toda a gente, em 1876, pela sua novidade, é as sombras terem uma tonalidade violeta, o que todavia se pode verificar na realidade, olhando atentamente.

Com o tempo, Renoir continuou a estudar a mulher, de preferência gorda como a Banhista, uma das numerosas versões dum mesmo tema. Se utilizou a técnica impressionista até ao fim da vida, foi para poder obter tonalidades brilhantes com pequenas pinceladas vivas de vermelho, amarelo, violeta e azul. A expressão do volume tornou-se o centro das suas preocupações. Embora as figuras sensuais sejam um pouco estilizadas, a estrutura e o movimento delas continuam a ser primordiais. Encontra-se nas suas telas algo característico de Rubens, reelaborado pela imaginação fecunda de Renoir, tornando-se mais delicado, tipicamente francês. É que este pintor, mais do que os outros impressionistas, conservou alguns elementos da tradição francesa que o ligam espiritualmente a alguns grandes artistas franceses do passado, como Delacroix, Fragonard ou Boucher.

Edgar Hilaire Germain Degas (1834-1917) não pode ser considerado como um verdadeiro impressionista. Conservou o desenho delicado de Ingres, e mesmo o seu estilo linear. Muito rico, Degas criava para seu próprio prazer; desprezava tudo o que era banal; apreciava, pelo contrário, o inesperado e o que contrariasse os hábitos. As cores de algumas das suas cenas de bailado ou das suas banhistas podem espantar o espectador ou chocá-lo. É que Degas não hesita em associar um verde arsénico com manchas vermelho-tijolo ou malva; estas combinações parecia destoarem, quando na realidade dão muito sabor à sua pintura. Nessa época, considerou-se essa paleta discordante; os nossos olhos habituaram-se a esses efeitos, assim como o ouvido se habituou também há muito tempo à música de Wagner, que na mesma época se considerava cacofónica.

A rejeição de convenções não se encontra apenas nas composições de Degas, mas também na escolha dos temas. O pintor evita os tipos e as atitudes amáveis, preferindo o que então se considerava deselegante. Por outro lado, a Bailarina exprime, com muita felicidade, mais a beleza passageira do bailado do que a personagem, e é realmente por este aspecto fugidio do momento fixado na tela que o artista se vincula ao Impressionismo. Poderá notar-se que a bailarina se encontra à direita do quadro. Todavia, a composição está perfeitamente equilibrada, porque o artista contrabalançou a mancha clara da bailarina com a mancha escura do chefe do corpo de dança, junto aos bastidores. Verifica-se assim que a pintura, quando o assunto se torna secundário, adquire significação e qualidades a partir da disposição, cuidadosamente composta, dum certo número de superfícies e de volumes coloridos que são como outras tantas acentuações. Até então, a pintura ocidental tinha-se quase sempre baseado num conjunto de linhas ou de movimentos que conduziam o olhar dum ponto para outro e que ligavam as formas umas às outras, criando a unidade da composição. Esta podia ser geométrica, como nos pintores do Renascimento italiano, ou livre, como nos mestres holandeses, mas uma certa ligação visual existia sempre entre as diversas partes. Pelo contrário, a arte extremo oriental tende a basear a composição na reunião dum certo número de acentuações gráficas e coloridas. Os Orientais conhecem, por exemplo, o valor dos brancos, formando espaços abertos, e tiram partido disso: dispõem algumas flores ou frutos num rectângulo e é essa disposição que cria a composição e sugere o espaço.

Precisamente, os impressionistas descobriram as estampas japonesas, assim como tinham descoberto Velásquez, não só porque estavam preparados para as compreender, mas também, mais directamente, porque se efectuou uma exposição de estampas dessas em Paris nos anos 6o. Degas não vai buscar os temas à arte oriental; mas as suas composições são influenciadas por ela, assimilando-a a ponto de a integrar no próprio estilo. É por isso que lhe acontece omitir uma parte dum objecto, e mesmo a parte mais importante, desde que a parte restante cumpra a função plástica procurada. Por exemplo, o chefe do corpo de dança fornece a mancha escura necessária para estabelecer um equilíbrio assimétrico; mas a cabeça não acrescentaria nada e por isso Degas esconde-a atrás dum pano do décor. Em vez de respeitar o ângulo de visão habitual, o pintor prefere olhar as personagens dum ponto de vista inédito, ora de cima, como se estivesse no balcão, ora de baixo, como se o espectáculo fosse observado do fosso da orquestra. Esta óptica explica-se facilmente, porque Degas era um frequentador assíduo da Ópera de Paris. Desde então, a fotografia e principalmente o cinema multiplicaram os enquadramentos e os ângulos de visão deste género, de modo que estamos actual e perfeitamente familiarizados com eles.

Como Degas, Toulouse-Lautrec (1864-1901) tem uma lucidez notável. Observa os costumes e os vícios dos seus contemporâneos e, com uma linha firme e expressiva, fixa-os numa cruel verdade.

Os inovadores do fim do século não tardaram a pôr em dúvida as próprias premissas do Impressionismo. A finalidade da pintura seria efectivamente registar o momentâneo, uma atmosfera sempre em mudança, uma ambiência luminosa efémera e fortuita? Não deveria o pintor procurar uma significação mais permanente? Não deveria estudar, antes de mais nada, a estrutura e a forma em vez das aparências? Alguns pintores pós-impressionistas testemunham estas inquietações. Entre eles, citemos em primeiro lugar Georges Seurat (1859-1891). Um Domingo na Grande-Jatte é impressionista pelo assunto: parisienses «de boa sociedade» vêm tomar ar à beira de água. Seurat, conservando inicialmente a divisão da pincelada impressionista, leva-a mais longe, fragmentando metodicamente essa pincelada em pontos coloridos, e é por isso que a sua técnica foi denominada pontilismo. Com efeito, consiste numa justa-posição de pequenas manchas de cor cuja intensidade é graduada para criar uma certa profundidade. Enquanto o método de Monet era parcialmente instintivo, o de Seurat é rigoroso e fundamentado.

As formas, de novo mais nítidas, estão de tal modo estilizadas que parecem quase abstractas, O artista não pinta nenhum pormenor supérfluo. Interessa-se principalmente pelos contornos, reduzidos ao essencial, que transformam as massas em figurações quase geométricas, representem elas o que representarem. As formas já não são um pretexto para exprimir os volumes e estabelecer o seu lugar no espaço. Não há movimento neste quadro e as personagens, rígidas, lembram as figuras monumentais de Piero della Francesca; tudo se passa de facto como se se encontrasse uma síntese da vida, imobilizada num instante altamente significativo e não apanhada repentinamente num momento passageiro. A isto chama-se Neo-impressionismo. Seurat morreu jovem. A sua obra marca um dos pontos de partida da arte moderna.

Também Paul Gauguin (1848-1903) exerceu uma influência determinante. Tornou-se pintor relativamente tarde, depois de ter sido marinheiro e empregado bancário. De ascendência peruana pelo lado materno, revoltou-se contra todas as convenções da sua época, tanto na vida privada como na vida artística. Primeiramente influenciado pelas cores luminosas dos impressionistas, depressa ficou fascinado — consequência das suas viagens marítimas — pelas civilizações primitivas, pouco marcadas pelo Ocidente. Foi sempre um visionário panteísta. Logo de início, a fé quase infantil das aldeãs da Bretanha inspirou-lhe O Cristo Amarelo, em que a figura distorcida do Redentor, tal como a mostram os calvários bretões, lembra as crucificações dos pintores italianos dos séculos doze e treze. Gauguin mostrou-se pouco preocupado com o realismo; o seu grafismo e as cores lisas anunciam já de certo modo o Expressionismo e, evidentemente, o Simbolismo. As toucas brancas das mulheres formam um arabesco sem relevo; lembram a arte do vitral, com zonas duma só cor delimitadas por contornos.

Este período bretão foi a primeira etapa do regresso de Gauguin ao primitivismo. Em 1891, instalou-se no Taiti. Este retorno às origens da arte revela-se bem em Manao Tupapau: a composição é bidimensional; cada forma ou zona colorida está delimitada por um contorno e pintada com uma só cor, sem modelado (designado, aliás mais sistematicamente, noutros artistas da mesma época, por cloisonnisme (termo que define a compartimentação das zonas coloridas nos quadros de Gauguin e seus continuadores. De cloison, tabique)). Para conseguir uma obra altamente decorativa, Gauguin não hesita em deformar as proporções das figuras, em modificar a perspectiva ou em sacrificar as cores da realidade. Os seus tons vigorosos são agora efectivamente os das tapeçarias e vitrais medievais. Apesar da intensidade das cores, os valores luminosos são pouco contrastantes no conjunto, sendo a riqueza das cores devida à sua profundidade.

Gauguin, tanto pelas pessoalíssimas concepções da arte, como pelas suas ideias sobre a religião, foi muito atraído pela arte primitiva, cujo carácter linear e ausência de perspectiva são em parte consequência da indiferença em relação a qualquer realismo e, por outro lado, são também consequência da interpretação mágico-religiosa das formas. Preferir isso à vida parisiense, era nessa época muito chocante para as pessoas, que, como bons burgueses conformistas, não lhe perdoaram. Com o tempo, a sua obra — a única coisa que conta, como em qualquer criador — triunfou dos preconceitos sociais. Gauguin extraiu dos povos primitivos tudo o que correspondia à sua estética pictural, sem os imitar todavia. Porque, apesar de pouco realistas, as suas formas não têm de modo algum uma concepção polinésica. Os assuntos têm muitas vezes uma inspiração ocidental, mas as personagens, o décor, grande número de símbolos e os títulos dos quadros do último período são neozelandeses.

Mais literalmente simbolista é a arte poética e misteriosa de Odilon Redon (1840-1916). Durante toda a vida, Redon teve talvez mais a companhia dos poetas do que a dos pintores. Foi amigo de Mallarmé e de Valéry. Sensível ao fabuloso, ao mágico, submeteu-se ao inconsciente, encontrando imagens próximas das «correspondências» de Baudelaire.

O místico ardente que era Vincent van Gogh (1853-90) lançou-se com uma paixão quase incontrolada em tudo o que fez. Como Gauguin, teve outras actividades antes de se consagrar unicamente à pintura. Empregado durante muito tempo na loja de Goupil, marchand d’art internacional — primeiro em Haia, depois em Londres e finalmente em Paris —, esse holandês visionário abandonou a profissão em 1876 para se tornar evangelizador protestante e trabalhar como missionário nos bairros pobres de Whitechapel, em Londres, e depois junto dos mineiros de Boridage. Mais pobre que os miseráveis a quem se dedica de corpo e alma, esse iluminado inquieta de tal modo os seus superiores religiosos que estes despedem-no. Em i88o, decide pintar, entregando-se à arte com uma energia feroz, produzindo uma grande quantidade de obras notáveis, principalmente durante os últimos cinco anos da sua vida, como se quisesse dizer tudo antes que a loucura e a morte o levassem.

Foi durante algum tempo amigo de Gauguin, que o influenciou um pouco, mas apenas exteriormente. O cloisonnisme e as cores lisas de Gauguin encontram-se, por exemplo, em A Ama, de Chicago (um dos cinco retratos que Van Gogh fez da Senhora Roulin), mas o sentido dos volumes é mais pronunciado em Van Gogh; antes de mais nada, é um retrato apaixonado e ardente que traduz o carácter do modelo, reflectindo simultaneamente a personalidade do artista. Van Gogh não se interessa pela beleza abstracta; procura principalmente valorizar o que lhe parece significativo ou expressivo (de facto, é um precursor do Expressionismo). Assim, viu a Senhora Roulin mormente como uma mãe; por isso aumenta as ancas e os seios. Como o pescoço se lhe apresentava desprovido de interesse, colocou a cabeça directamente em cima dos ombros. Quanto aos traços fisionómicos, bastante pesados e um pouco grosseiros, desprezou-os relativamente para dar maior importância aos olhos e à boca, aumentando-os para valorizar mais as características essenciais da cara.

Apesar da intensidade plástica desta tela, Van Gogh mostra-se nele muito decorativo, o que não está nos seus hábitos. A sua energia incandescente transforma em chamas A Estrada dos Ciprestes, em que o mais pequeno pormenor adquire uma vida atormentada. As cores foram aplicadas com violência em estrias onduladas, por vezes com o pincel, mas, mais frequentemente, com a espátula; a luminosidade e a pureza dos tons mostram que Van Gogh utilizava as cores tal como saíam dos tubos, sem as misturar. Toda a paisagem está em movimento; as árvores parecem chamas verdes e a terra é semelhante a uma vaga; céu e sol reduzem-se a turbilhões. Esta orgia visual, como muitas outras do mesmo artista, é sem dúvida produto dum espírito delirante, mas literalmente possuído pela necessidade de criar.

Se a Gauguin interessa principalmente o aspecto decorativo e a Van Gogh a grande intensidade dramática, Paul Cézanne atribui uma importância primordial à estrutura. Inicialmente, Cézanne (1839-1906), que era mais velho do que os outros dois, mas atingiu mais lentamente a maturidade artística, expôs com os impressionistas; todavia, a sua pincelada não tinha em nada a fluidez e a virtuosidade que Manet apreciava. Este, aliás, falando das telas de Cézanne, qualificava-as de «pintura suja», porque nessa altura elas estavam cheias duma pasta espessa, brutalmente triturada. Cézanne não negava algumas conquistas do Impressionismo, principalmente no domínio da cor, mas não podia admitir o seu gosto pelo momento transitório. Assim, procurou combinar as suas teorias da luz com a estrutura sólida que tinha observado nos museus, nos quadros dos mestres antigos.

A sua Natureza-Morta com Cesto merece um estudo profundo. Como Chardin, Cézanne dá à sua composição um certo equilíbrio arquitectónico. Ano após ano, estudou cada vez com mais cuidado a disposição das coisas que queria pintar. Escolhe objectos muito simples, que coloca frequentemente numa mesa de cozinha, como acontece neste caso. A disposição desta natureza-morta é subtil, na sua aparência despretensiosa. A parte da frente da mesa está paralela ao plano do quadro, o que é acentuado pelos objectos colocados horizontalmente na mesa e pelos frutos alinhados dentro do cesto. A cadeira que se vê ao fundo e o canto da outra mesa, à direita, põem fim a esta série de planos paralelos. Poderá notar-se, de resto, que esta composição é um conjunto de figuras geométricas. Assim, as maçãs são esferas e, para sublinhar esta forma, várias pinceladas concêntricas repetem a sua silhueta circular. Os contemporâneos censuravam Cézanne, dizendo que desenhava mal, e apresentavam como exemplo este género de naturezas-mortas. Mas Cézanne quis que, ela fosse assim mesmo, para obter um efeito de composição: o que ele fez foi submeter os dados do real ao fim artístico que queria atingir. De facto, com Cézanne começa uma das grandes aventuras da arte moderna: submeter as formas da natureza às necessidades da composição.

A aparências da realidade tiveram pois uma importância cada vez mais relativa para Cézanne. Por muito bela que seja a textura duma maçã ou a luz incidindo no fruto, são factores insignificantes para o artista, em comparação com a natureza fundamental do fruto e as possibilidades picturais que apresenta. Em geral, as maçãs são quase esféricas. É isso que ele retém e não os acidentes que possam deformá-las ou alterar-lhes a cor. Cézanne tenta dar o aspecto permanente e universal da maçã, tal como o imaginamos quando pronunciamos a palavra «maçã». Desde Giotto, a reprodução do volume numa superfície plana tornara-se uma das principais finalidades da arte ocidental. Cézanrne tentou também sugerir o volume, mas apenas com a cor, e não com os jogos de luz. Aí estava algo de novo! Efectivamente, Cézanne tinha reparado que algumas cores parece fazerem avançar as superfícies no espaço, enquanto outras as fazem recuar; este fenómeno visual permitiu-lhe modelar as massas apenas com a ajuda da cor e estabelecer uma sucessão de planos servindo-se unicamente de tonalidades diferentes. Cézanne abria assim um caminho novo para a pintura. Disse-se muitas vezes que foi, como inovador, o Giotto do século XIX. Primitivo do seu tempo, na medida em que tinha — como ele próprio dizia — «uma pequena sensação» da existência de possibilidades ainda inexploradas.

Esta «modulação modelante» pela cor pura, e a importância atribuída à estrutura, constituem os fundamentos da pintura de Cézanne e explicam o lugar importante que ocupa na história da arte. Reencontram-se estas concepções nas suas paisagens, como A Montanha Sainte-Victoire, de Washington (uma das suas numerosas variações sobre esse tema). Esta paisagem foi primeiro dividida em «tramas», ou seja num certo número de rectângulos, cada um deles desempenhando uma função na composição total, devido à ordenação dos pormenores e dos planos. Tem-se inicialmente a impressão de que estas composições inspiradas na natureza não têm nenhuma relação com a realidade, que são imaginárias. Ora, acontece que foram fotografados os lugares pintados por ele em Aix-en-Provence e arredores; as fotografias são evidentemente mais pormenorizadas do que os quadros, mas os elementos essenciais destes encontram-se surpreendentemente nas fotografias. Cézanne aplica aqui o mesmo método das naturezas-mortas; analisa o que vê diante de si com grande cuidado de modo a reter os elementos susceptíveis de formar uma composição pictural perfeitamente arquitectada rejeitando todo o acessório. No primeiro plano, o ramo de pinheiro, que tem o mesmo movimento da silhueta da montanha no horizonte, é um exemplo excelente disto. Tudo nos leva a pensar que esse paralelismo existia realmente, mas o pintor descobriu-o e tirou partido disso para criar uma relação entre o primeiro plano e o fundo, para nos fazer sentir uma impressão de espaço e conferir uma unidade maior à composição. E, tal como nas naturezas-mortas, prefere o geral ao particular, valorizando por exemplo a massa cilíndrica do tronco da árvore e a silhueta característica da montanha.

Voltamos a encontrar os mesmos princípios nas composições com figuras humanas. Agora, o problema é todavia mais complexo, uma vez que há seres vivos. Nas paisagens e naturezas-mortas, Cézanne podia não considerar o movimento. Era-lhe pois mais fácil tratar na tela apenas alguns elementos da realidade. Abordando a figura humana, a deformação torna-se mais perigosa, especialmente em relação às ideias da época. Contudo, na obra de Cézanne, não é bem de deformação que se trata, mas antes de selecção e estilização. Em suma, o artista modificou principalmente as dimensões e as proporções das diferentes partes do corpo. As Grandes Banhistas, do Museu de Filadélfia, são um exemplo extremo disso. Uma das ambições de Cézanne era fazer «Poussin diante da natureza», quer dizer, reencontrar a estrutura pictural do mestre antigo e associá-la com a paleta dos impressionistas. A composição das banhistas é geométrica. As árvores inclinam-se para a frente, formando com o grupo um triângulo equilátero. Por sua vez, os dois grupos de mulheres nuas formam dois triângulos no interior do precedente. Neste exemplo, a exactidão anatómica tem pouca importância em comparação com as exigências da composição. As figuras humanas surgem-nos como formas geométricas, tal como o tronco da árvore se torna cilíndrico n’ A Montanha Sainte-Victoire e a maçã toma o aspecto esférico na Natureza-Morta.

As pinturas de Cézanne protestam contra a falta de estrutura das obras impressionistas, mas também, e ainda mais, contra a insignificância dos pintores oficiais, como Bouguereau e muitos outros. Basta comparar as telas características de Cézanne com as de Bouguereau para avaliar a distância que separa a arte inovadora do grosseiro sentimentalismo estagnado das celebridades então consagradas. O Nascimento de Vénus, de Bouguereau, por exemplo, representa tipicamente o ideal artístico duma sociedade de novos ricos. As figuras esguias e moles estão por certo bem desenhadas, segundo as normas académicas. O traço de Ingres combina-se com leves influências de Botticelli e de Rafael. Está tudo feito com cuidado e minuciosamente arranjado, mas é impessoal e sem alma. Só uma classe de novos-ricos, sem sentido crítico nem formação artística, podia deleitar-se diante desta obra de efeitos superficiais. Nada disto acontece com as telas poderosas de Cézanne, cheias de invenções picturais. É que Cézanne, diferentemente de Bouguereau, tinha alguma coisa para dizer e exprimir.


história mundial da arte
everard m. upjohn, paul s. wingert e jane gaston mahler
trad. maria teresa tendeiro e rui mário gonçalves
vol. 6 – artes primitivas e arte moderna
bertrand editora
1966


07 março 2008

revelação






Hoje só fotografei árvores,
Dez, cem, mil.
Vou revelá-las à noite.
Quando a alma for câmara escura.
Depois vou classificá-las:
Segundo as folhas, os anéis dos troncos,
Segundo as suas sombras.
Ah, como as árvores
Entram facilmente umas nas outras!
Vejam, agora só me resta uma.
É esta que vou fotografar outra vez
E vou observar com assombro
Que se parece comigo.
Ontem só fotografei pedras.
E a pedra afinal
Parecia-se comigo.
Anteontem — cadeiras —
E a que resultou
Parecia-se comigo.

Todas as coisas se parecem terrivelmente
Comigo...

Tenho medo.









marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em Mateus
quetzal
1997







04 março 2008

poema







Falámos tanto ou tão pouco que de repente o silêncio que se fez
foi essa patada no peito, de que guardaremos a marca quando
agora choramos, quando estendemos as mãos carregadas de
dedos mortos, sonhámos tanto que mais de uma vez tivemos de
matar, que mais de uma vez nos estoiraram os olhos sob a pólvora
das lágrimas e as tuas mãos voaram estilhaçadas, jogámos tanto
que para não nos perdermos arriscámos tudo, até tornar a
morte uma coisa nossa, tão nossa, que é ela que anda agora vestida
com a nossa pele e os nossos ossos, escorregando pelas paredes
de cabeça para baixo ou subindo pelo interior dos bicos, passando
de cadafalso em cadafalso, com os lábios furados pelas unhas, com
a cintura roxa das dentadas da noite, da miséria dos dias.
Roda de todas as torturas e de todas as seduções, deixaste de girar.
Estás agora aqui, partida, abandonada no próprio local do sangue.
Transportada de homem em homem através dos séculos, foste há
pouco deposta pelo último homem, esse que desapareceu, ia de lado,
com os joelhos duros cobertos de água e as mãos cem metros à sua
frente em sinal de maldade. Corpo a corpo foste gasta até à última
noite e até à última estrela, palavra a palavra foste sugada e bebida e
de todos os lados sempre novas sempre novas bocas chegavam para te
sugar e beber. Ficaste um gesto que perseguimos à dentada e acabámos
por matar. Vede: a destruição prossegue docemente. Restam apenas,
aqui e além, algumas cidades com os seus milhões de almas e nada mais.
Pequenas marcas de sangue, cada vez mais vivas, assinalam a nossa
passagem entre as agulhas de carvão do tempo. Canhões ocupam a entrada
da luz. E de norte a sul, de leste a oeste, de criança para criança,
aguarda-se o sinal de fogo.
Não estranheis os sinais, não estranheis este povo que oculta a
cabeça nas entranhas dos mortos. Fazei todo o mal que puderdes
e passai depressa.






antónio josé forte
40 noites de insónia de fogo de dentes numa girândola
implacável e outros poemas

lisboa
1958





03 março 2008

maria gabriela llansol (1931-2008)





xc. dos seres





_________se ele ainda estiver a dormir quando eu voltar ao quarto, e o clavicórdio continuar a reger o abismo com a sua simples presença e a sonoridade que pressinto,
sento-me à entrada da ausência, aspirando o meu vagar nocturno e o movimento dos músculos das árvores,


lugar particular ali,
lugar universal aqui.







maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silênco de 2004
assírio & Alvim
2006



01 março 2008

as flores que devoram mel





As flores que devoram mel
ficam negras em frente dos espelhos.

Os animais que devoram estrelas em frente dos espelhos
ficam brancos por detrás dos pêlos
ou das plumas da idade.

As pedras por onde circula a água
ficam vivas de tanto cantar e, quando se voltam,
atingem a sua maior velocidade interior.

Se vêm às portas ver quem bate,
os lençóis cobrem--se de respiradoras —
quando regressam ao sono, deixam as mãos abertas.

Se é uma estátua que bate,
corre-lhe o sangue pela boca, e sobre os ombros
torcem-se os cabelos,
e as asas tremem em frente da porta.

Se é um retrato,
sorri sufocado pela noite adiante.

Os espelhos são negros como os jacintos
da loucura.

Os crimes que olham para o espelho têm uma vibração
silenciosa.

Se é uma criança, diz:
eu cá sou cor-de-laranja.

Porém às vezes é bom ser branco,
é bom estar deitado.

O mel faz bem às pedras,
atrai os olhos dos anjos.

Quem aplaina tábuas
acumula uma obscura sabedoria.

Olha para os espelhos,
tens um talento assimétrico de assassino.

Vê-se nos teus ramos frutos negros
contra a paisagem móvel.

Se fosses um peixe,
a porta estaria nas águas mais íntimas, frias, límpidas
e caladas.

E não batias — cantavas a tua síncope
terrível.

Nada se veria na vertente do espelho.

Serias como uma máquina cor de cal
respirando.

Por isso te ofereço este ramo de lâminas
e um fato de perfil — e andas nos labirintos.

Por isso te sento numa cadeira de ar.

Por isso somos os dois um quadrúpede de seda
de uma beleza truculenta.

Temos toda a vigília para encher de silêncios.

Pensamos os dois o mesmo corpo inaugurado.

As flores que devoram mel tornam negros
os espelhos.

As colinas vão olhando, e tremem na nossa carne
as estampas de ouro
extenuante.

Por isso, por isso, por isso —
somos assim
obscuros.









herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968





29 fevereiro 2008

o ócio torna lentas as horas…






10 de Dezembro

O ócio torna lentas as horas e velozes os anos. A actividade torna rápidas as horas e lentos os anos. A infância é a actividade máxima, porque ocupada em descobrir o mundo na sua diversidade.

Os anos tornam-se longos na recordação se, ao repensá-los, encontrarmos numerosos factos a desenvolver pela fantasia. Por isso, a infância parece longuíssima. Provavelmente, cada época da vida é multiplicada pelas sucessivas reflexões das que se lhe seguem: a mais curta é a velhice, porque nunca será repensada.

Cada coisa que nos aconteceu é uma riqueza inesgotável: todo o regresso a ela a aumenta e acresce, dota de relações e aprofunda. A infância não é apenas a infância vivida, mas a ideia que fazemos dela na juventude, na maturidade, etc. Por isso, parece a época mais importante, visto ser a mais enriquecida por considerações sucessivas.

Os anos são uma unidade da recordação; as horas e os dias, uma unidade de experiência.









cesare paveseo ofício de viver - diário (1935-1950)trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004


27 fevereiro 2008

despidas, mas sempre belas!






simples, crescem pausadamente
adornadas de flores que darão frutos.
vestem-se de verde esperança
e nas suas folhas nascem pássaros
que cantam entre as manhãs e as árvores
onde vorazes se guardam os dias.

efémera a voz rasga por dentro
deixam desabar a resina,
e gritam à chuva negra,
o lamento de um amor irrecuperável
nas folhas que juncam o chão,
amarelecidas nos gemidos dos ventos.

olho-as na serenidade fria do dia
maravilhada vejo-as despidas
despidas, mas sempre belas!






l.maltez





21 fevereiro 2008

café da manhã





pôs café
na chávena
pôs leite
na chávena com café
pôs açúcar
no café com leite
e com a colher
mexeu
tomou o café com leite
e pôs a chávena no pires
sem me dar uma palavra
acendeu
um cigarro
fez rodinhas
com o fumo
pôs a cinza
no cinzeiro
sem me dar uma palavra
sem olhar para mim
levantou-se
pôs
o chapéu na cabeça
vestiu
o impermeável
porque chovia
e saiu
debaixo de chuva
sem uma palavra
sem me olhar
quanto a mim, meti
a cabeça entre as mãos
e chorei.






jacques prévert
paroles
trad. g.s.
éditions gallimard
folio
2003





a grande lousa





Eduardo Luiz (1932-1988)
a grande lousa, 1966
o/t, 97x130cm
col. MC



17 fevereiro 2008

os nomes inúteis






Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e a genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca


foi só inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.











maria do rosário pedreira
nenhum nome depois
gótica
2004





estranho dia






Às vezes paro à porta
com o olhar perdido e habituado ao silêncio,
há mais desertos ainda, dias
e morte noutros olhos.
Com a garganta habituada à sede,
com os pés às feridas,
saio para a rua
e já não há umbrais.

Ando um dia, passo outro,
acabo uma semana de vidros partidos
e tosse mais velha.
Hoje parece que sempre
choveu sobre mim,
e não me importa
se a chuva já não se parece ao esquecimento
e apenas deixa charcos, paredes mais sujas
e fuligem e tristeza nos olhos de rímel,
ainda tenho sede
e não me importa
voltar às coisas más e aos velhos tugúrios
à procura de algo que não encontro nem recordo,
que costuma principiar por um encontro,
talvez por outra palavra
e corre o perigo de crispar-se
até à forma da folha da faca.

Às vezes tudo é tão estranho
que não basta continuar a andar.







alfonso barrocal
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000








13 fevereiro 2008

ruínas






corre
pelas ruínas de si

o corpo
ao relento da vida

dentro do corpo
lugares desconhecidos

estações ermas
onde deixou recados

e inventou
imóveis paisagens

que nenhum tempo
pode esgotar

escreveu memórias
enviou cartas

que ainda hoje
cruzam altíssimos céus

singulares oceanos
remotas geografias

sem que um nome
se levante

uma saudade
se acenda

ou uma resposta
se construa

mas corre
corre ainda

pelas ruínas
de si

o olhar
senhor dos horizontes

romeiro
das santas cidades

domador
das bestas ferozes

que nos ombros severos
sustentam a cúpula

dos sonhos
letais


e canta
melancólicos versos

que nas ruínas de si
ressoam

como o recitar das baleias
nos telhados febris

de uma casa
que guardasse a loucura









gil t. sousa
poemas
2001






11 fevereiro 2008

os sinónimos






Para lá da luz está a sombra,
e por trás da sombra não haverá luz
nem sombra. Nem silêncio, nem sons.
Chama-lhe eternidade, ou Deus, ou inferno.
Ou não lhe chames nada.
Como se nada tivesse acontecido.









francisco brines
ensaio de uma despedida
(antologia 1960-1986)
trad. josé bento
assírio & alvim
1987





08 fevereiro 2008

restaurante






Leva-me outra vez para a mesma mesa
onde fico de costas para a janela
onde o tempo me esquece
onde nada me toca
o teu gesto protege
o teu corpo separa
a água que me dás
interrompe a memória


Só à porta da rua
o tempo reaparece.








yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998





07 fevereiro 2008

a imensidão íntima



O mundo é grande, mas em nós
ele é profundo como o mar. (Rilke)


O espaço sempre me fez silencioso. (Jules Valles, l´enfant)





I

Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio. Sem dúvida, o devaneio alimenta-se de espectáculos variados; mas por uma espécie de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito.

Pela simples lembrança, longe das imensidões do mar e da planície, podemos, na meditação, renovar em nós mesmos as ressonâncias dessa contemplação da grandeza. Mas trata-se realmente de uma lembrança? A imaginação, por si só, não poderá aumentar ilimitadamente as imagens da imensidão? A imaginação já não será activa desde a primeira contemplação? De facto, o devaneio é um estado inteiramente constituído desde o instante inicial. Não o vemos começar; e no entanto ele começa sempre da mesma maneira. Ele foge do objecto próximo e imediatamente está longe, além, no espaço do além (1).

Quando esse além é natural, quando não se aloja nas casas do passado, ele é imenso. E o devaneio é, poderíamos dizer, contemplação primordial.

Se pudéssemos analisar as impressões de imensidão, as imagens da imensidão ou o que a imensidade traz a uma imagem, entraríamos imediatamente numa região da mais pura fenomenologia – uma fenomenologia sem fenómenos ou, para falar menos paradoxalmente, uma fenomenologia que não precisa esperar que os fenómenos da imaginação se constituam e se estabilizem em imagens completas para conhecer o fluxo de produção das imagens. Noutras palavras, como o imenso não é um objecto, uma fenomenologia do imenso remeter-nos-ia sem rodeios à nossa consciência imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão construiríamos em nós o ser puro da imaginação pura. Ficaria então claro que as obras de arte são os subprodutos desse existencialismo de ser imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão, o verdadeiro produto é a consciência dessa ampliação. Sentimo-nos promovidos à dignidade do ser que admira.

Por conseguinte nessa meditação não somos “lançados no mundo”, já que de certa forma abrimos o mundo numa superação do mundo visto tal como ele é, tal como ele era antes que sonhássemos. Mesmo se estivermos conscientes do nosso ser mirrado – pela própria acção de uma dialéctica brutal - , tomamos consciência da grandeza. Somos então entregues a uma actividade natural do nosso ser imensificante.

A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranquilo.

E, já que haurimos nos poetas todo o nosso ensinamento filosófico, leiamos Pierre Albert-Birot, que diz em três versos (2):


E eu me crio com um traço de pena
Senhor do mundo,
Homem ilimitado.

(…)






(1) “A distância arrasta-me no seu exílio móvel”, Supervielle, l´escalier
(2) Pierre Albert-Birot, Les amusements naturels










gaston bachelard
a poética do espaço
trad. antónio de paula danesi
livraria martins fontes
s. paulo
1989




homossem









A noite vinha com umas mãos curvas de milagre
eram mãos tuas eram mãos minhas curvas de milagre
tu eras um holofote azul de dirigires alucinações
de prazer cor-de-rosa
tu eras uma flutuação constante de penumbra e surpresa
era um corpo de admiração e sublime
eras garbo da tua idade já nocturna para o pecado
tinhas uma mão que fazia regressar o espaço
por onde puxavas o amor
eras um corpo suave de admiração e sublime
um requinte de trazeres intenções pelo fato
tinhas um casaco especial de convidar uma visita
uma surpresa emancipava-te a vontade do queixo
não esqueço uma tua boca de construção de virtudes
porque beijavas onde o símbolo requeria
havia-te casa pelo convite da mão
eu sabia que a tua palma tinha um rio que fazia estalar
o medo
era a sedução de tu meditares longamente sobre quem te fosse
mais próximo
e nascia um horizonte duma maneira do teu olhar
Fazias o espaço ser-te magia de convite
convidavas uma semente de ir lá
porque não se falava no que se ia saber
nós tínhamos um conforto de destino próximo e azul
que era a manhã de tu fazeres desaparecer o medo do rio
Não íamos quebrar fauna pelos bosques
íamos sair ao concreto do tempo
por onde tu erigisses catedrais de
inauguração sentimental
Era um amor que tinhas
era inauguração dum desejo
o medo do rio que tinha uma manhã por dentro
era tudo tão diferente e admirado de nós
a maneira das coisas nos olharem por cima do dia
como o que fosse diferente de imaginar
Nada acontecia
Tu eras um holofote azul de construíres
alucinações de meio-dia cor-de-rosa.














antónio gancho
o ar da manhã
assírio & Alvim
1995





28 janeiro 2008

errar nos tempos





(46)

Nunca nos detemos no tempo presente. Antecipamos o futuro que nos tarda, como para lhe apressar o curso; ou evocamos o passado que nos foge, como para o deter: tão imprudentes, que andamos errando nos tempos que não são nossos, e não pensamos no único que nos pertence, e tão vãos, que pensamos naqueles que não são nada, e deixamos escapar sem reflexão o único que subsiste. É que o presente, em geral, fere-nos. Escondemo-lo à nossa vista porque nos aflige; e se nos é agradável, lamentamos vê-lo fugir. Tentamos segurá-lo pelo futuro, e pensamos em dispor as coisas que não estão na nossa mão, para um tempo a que não temos garantia alguma de chegar.

Examine cada um os seus pensamentos, e há-de encontrá-los todos ocupados no passado ou no futuro. Quase não pensamos no presente; e, se pensamos, é apenas para à luz dele dispormos o futuro. Nunca o presente é o nosso fim: o passado e o presente são meios, o fim é o futuro. Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver; e, preparando-nos sempre para ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos.







blaise pascal
pensamentos escolhidos
trad. de esther de lemos
editorial verbo
1972





27 janeiro 2008

kopenhagen script







-1-

as árvores furiosamente nuas
largam os seus pássaros negros
num outro mês qualquer
e as estradas separam as folhas
rolam as pedras cansadas de sol
para que o sul seja um lugar
onde a água espera
e o destino se esconde
em forma de ilha

que mão amputar
se assim nos pedem o frio?




-2-

são tão largas as horas
que se consegue ver
a solidão dum comboio vermelho
a raspar a noite
como homens à procura de uma porta
definhando gloriosamente

nas suas estações de
desespero



-3-

pelas gárgulas das catedrais
escoam-se noites antigas
que homens pacientemente sábios
recolhem letra a letra

a neve, tão mansa,
guarda-lhes a sombra e os passos
que numa janela alta e distante
um outro homem há-de ler


-4-

às vezes os navios doem
como ópio num pulmão derrotado



ou como quando tu ficas
no impossível meridiano da ausência
e eu te aceno de um silêncio
que é quase a loucura dos pássaros











gil t. sousa
água-forte
2007







birds









gil t. sousa
birds 2007







24 janeiro 2008

abandono






A quem senão a ti direi
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
-de juntar o que me está doendo ao vento
que não bate mais à tua porta? Eu sei

que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo

sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado

ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.

Não haver palavras és tu a desaparecer.









bernardo pinto de almeida
hotel spleen
quetzal
2003






21 janeiro 2008

os livros de pascale










(…)

O deserto tem muitas coisas belas, mas nada dá mais paz aos homens que o atravessam do que estar deitado de noite por baixo do seu céu. O ar seco perdeu até os mínimos vapores do dia e as estrelas tombam em cascata de um baixíssimo tecto colorido de um violeta translúcido como água; dir-se-ia que nos chovem em cima em torrente. Os perfumes do deserto desaparecem com o frio, e não resiste em redor um rumor mais consistente do que a respiração do nosso vizinho deitado um pouco adiante. De dia caminhámos, ao entardecer virámo-nos a oriente para o nosso deus e alimentámo-nos de poucas coisas gordas e boas. Bebemos a água pura e doce tirada lá de baixo, no fundo do coração do Sara, e agora só nos resta arrumar-nos no centro do céu e ficarmos em paz com todas as coisas. É o que todos fazem.

Eu procurava todas as noites colocar-me um pouco afastado dos outros, para me treinar a vencer o medo dos escorpiões que se deitam debaixo das pedras da superfície — nunca me curei deste medo — e, enfiado no meu saco-cama, olhava para cima e inevitavelmente vinham-me à mente três ou quatro versos daquelas poesias que tinha lido na praia:

Chega lá o poeta
e depois retorna à luz […]
[…] estou longe com a minha melancolia
atrás de todas as outras vidas perdidas

Estes versos que me vinham mastigados à boca eram quase como urna oração; não poderei defini-los de outro modo. Eu não tinha o meu deus como os outros. Não podia no meio das dunas arranjar um lugarzinho, pôr o tapete no chão e aliviar-me um pouco do estupor do deserto com uma confortante canção de embalar a murmurar ao Sol que se põe. Chegava à noite desarmado e sozinho. E aquele — ainda me custa a pronunciar o seu nome — apoderava-se então da noite desértica e falava por mim a seu respeito. Dizia que no meio dela, confundido com todo aquele reluzir de estrelas em silêncio, eu descobria em qualquer parte de mim uma dor, um pequeno espasmo misterioso que me fazia comover por algo que eu não sabia muito bem o que era. E, ao deixar-me cair adormecido, parecia-me ver as estrelas tombarem sobre mim sem peso e sem queimarem.

Acordava sempre com a sensação de que um escorpião estava a farejar por entre as pregas do saco-cama. Mas era a primeira luz da manhã que começava a aquecer-me. Bebia leite de camela e depois chá fortíssimo e muito açucarado, comia biscoito cozido na pedra e tornava a pôr-me a caminho com o meu jumento. Tchonc, tchonc, tchonc, batiam as minhas coxas na barriga mole da burrinha. E com aquela melodia poderia ir até ao infinito, com todos os meus sentidos tranquilamente à espera do que havia de trazer o dia.

No deserto há muitas coisas para ver, ouvir e cheirar. E cada uma tem um grande espaço em seu redor. Um arbusto enfezado de murta lança um perfume intensíssimo, mas é o único arbusto no raio de quilómetros e é o único odor que pode notar-se naquele momento. Com o olhar podem abraçar-se diversas horas de caminho e muitas montanhas e depressões e pistas que se perdem além do horizonte, mas nada está amontoado ao acaso, nada se sobrepõe e colide, como acontece numa cidade. Assim, todos os ruídos são distintos e livres de se propagarem até ao infinito. Tudo isto é muito repousante, tudo isto dá um sentimento de grande ordem e limpeza que torna fácil o caminho e nos deixa livres para pensar em sossego. Assim, o tempo torna -se uma coisa muito discutível e uma marcha de dez dias pode parecer um curto e agradável passeio. Desde que não queiramos alterar as regras. Fazem-no os que do deserto saem maltratados e perturbados ou os que não saem vivos; parece quase impossível, mas ainda há quem tente fazer as coisas à sua maneira. Eu viajava desviando-me sempre que me apetecia ver qualquer coisa ou perseguir um ruído. A corrida de um coelho, um grupo maravilhoso de rochas violetas, uma depressão escavada por fendas estranhas e complicadas, uma pista mal traçada que levasse à invisível nascente de água protegida por um beduíno e por uma palmeira anã. Inépcias deste género.

Nas horas mais quentes procurava urna sombra entre as rochas e fazia o chá com os pauzinhos que havia apanhado ao longo do caminho; o jumento tinha a sua aveia e para ele era sempre domingo. Eu pensava em muitas coisas, creio que sem cessar, mas de um modo tão suave e tão leve que nem dava por isso. Estava a dar-me a um luxo: esta minha marcha era como que umas férias de tudo. Assim cheguei a Siwa. E cheguei lá em companhia de urna data de gente.

Vinham do Sinai e estavam com as mulheres e os filhos num total que talvez fosse de duzentos, amontoados em cima de velhos camiões militares. Encontrei-os pouco antes da descida da colina de Dakrour, quando para lá da primeira barreira de palmeiras já se via a piscina de água quente que, dizem, mas não é verdade, foi construída por Marco António para Cleópatra. Avançavam pela estrada muito lentamente, precedidos por uma camioneta da milícia, os quatro camiões apinhados de gente carregada de trouxas, e em cada um deles um soldado negro e magro tentava desfraldar no ar pesado de poeira escaldante a bandeira verde da Jihad. Dos lados dos camiões estavam pendurados cartazes já desbotados com frases que eu não percebia escritas em caracteres muito grandes.

Quando a caravana me alcançou arrancando numa ultrapassagem interminável, um tipo de cara cinzenta de pó gritou-me qualquer coisa incompreensível. Fiz-lhe um gesto de saudação e por única resposta ele entoou um canto, encorajando com amplos gestos toda a gente a fazer o mesmo. Saiu um coro a custo que foi enfraquecendo logo até se tornar uma ladainha desafinada e bastante lúgubre. Deviam estar todos esgotados. Contudo, passado pouco tempo esse tal debruçou-se do parapeito e repetiu-me gritando a sua pergunta: «Inglé?». Não. Agora finalmente compreendi. «Yenky? » «Não, alexandrino, alexandrino da junihuriya árabe do Misr», respondi-lhe, com a certeza de que a minha cómica inflexão o enterneceria.

E, de facto, tal como todos os árabes que tenham uma pequena conversa na sua língua comigo, também se pôs a rir. Só que ria às gargalhadas e por entre os soluços continuava a gritar-me «Iskandariya, Iskandariya a gorda, a puta gorda, a puta gorda! Ah,, homem afortunado de lskandariya!», escandindo bem as palavras, corno se fizesse tenções de ensinar-me urna frase novinha em folha. E, com efeito, era a primeira vez que alguém, dirigindo-se a mim, usava o nome árabe de Alexandria.

Entretanto, a minha burra insistia em zurrar de despeito pela poeira que os pneus levantavam, envolvendo-nos em moles e asfixiantes baforadas de pó-de-talco. Para manter a dignidade, tentei acalmá-la com umas pancadas secas das rédeas no cu gordo. Era a primeira vez que demonstrava a minha autoridade de maneira assim brusca, e ela levou tão a mal que desatou a arrastar-me numa louca galopada pela ladeira abaixo, se calhar querendo mostrar ao vasto público dos refugiados a sua indómita burrice. Os dos camiões reanimaram-se de repente e começaram a incitá-la inesperadamente de bom humor, berrando toda a espécie de insultos. Eu só podia tentar manter-me em equilíbrio na garupa fazendo por salvar a pele. Assim, entrei em Siwa perseguido por uma horda motorizada de árabes em aclamação, meio morto de medo, agarrado às rédeas do jumento que rangia os dentes como um chacal.

Passei uma semana a tomar estupendos banhos quentes nas velhas piscinas, a vadiar pelo oásis por entre as ruínas dos antigos monumentos e a beber vinho de taráxaco no café de um pequeno hotel que tinha uns quartos estranhamente bonitos. Siwa era o Egipto, o Egipto árabe e africano, o Egipto dessa civilização demasiado velha para ser compreensível, mas que perdurava misteriosamente nos rostos de uma raça jamais vista em Alexandria: gente que falava um dialecto de sons cerrados entre os lábios e se vestia de cores conturbantes. Para mim, era como estar em viagem por um trópico que jamais atravessara.

Via coisas bastante notáveis à minha volta, coisas estranhas e exóticas, mas a minha curiosidade enfraquecia logo até se reduzir a nada. Vagueava em vez de observar. Caminhava como que pairando entre os pomares de damasqueiros e os hortos de palmeiras pejadas de cem maravilhosas qualidades de tâmaras. Brincava com os reflexos claro-escuros dos regatos ou no meio das grandes pedras historiadas do templo do Oráculo, sem realmente procurar nem descobrir nada que me sacudisse de um profundo desinteresse interior.

Em resumo, tinha a cabeça noutro sítio qualquer. Só que não sabia onde, senão poderia orientar-me de qualquer maneira. De vez em quando, ia ter com a minha burra ao estábulo onde estava alojada e, despreocupadamente, confiava-lhe que não me sentia nada brilhante para a minha idade e a minha condição. Ela, naturalmente, não respondia.

(…)





maurizio maggiani
os livros de pascale
trad. josé colaço barreiros
gradiva
1996

16 janeiro 2008

pedido de empréstimo



Arranja-me uns versos para o verão.
Coisas de areia, de memória
e sem futuro. Passos das tuas coisas
em volta, a luz perdendo
que guia o pescador, o turista
e o amante em aventuras com regresso
aos quartos onde repousa para o fim
a escassa vida.

Escreve como quem descreve quase
o fim do amor, da casa, do caminho
o teu ao meio-dia de Agosto
quase inteiro de sol
e outras poentes alegrias.





antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




13 janeiro 2008

andre breton e paul éluard /a vida intra-uterina



Nada ser. De todas as maneiras que o girassol tem para amar a luz, o pesar é a mais bela sombra no quadrante solar. Ossos cruzados, palavras cruzadas, volumes e volumes de ignorância e de saber. Por onde é preciso começar? O peixe nasce de uma espinha, a macaca de um caroço. A sombra de Cristóvão Colombo ela própria gira sobre a Terra de Fogo, não é mais difícil do que o ovo.
Uma grande segurança — e grande sem termo de comparação — permite ao espectro negar a realidade das formas que o encadeiam. Mas ainda não nos encontramos lá. Os gestos proibidos das estátuas no molde deram estas figuras imperfeitas e espectrais: as Vénus cujas mãos ausentes afagam o cabelo dos poetas.
De uma margem para a outra, as lavadeiras lançam o nome de um personagem fantástico que percorre a terra simulando ódio por quanto beija. As suas canções são tudo o que me arrebata e que no entanto é arrebatado, como os pombos-correios fotógrafos obtêm sem o quererem panorâmicas do campo inimigo. Os seus olhos estão menos distantes de mim que o abutre da sua presa. Compreendi que o rosto da mulher só se desvenda durante o sono. Está em deslumbramento, entre as pastagens religiosas dos céus. Quer de dentro, quer de fora, é a pérola que mil vezes vale a morte do mergulhador. Por fora é a fronde admirável, por dentro é a ave. Os espinheiros dilaceram-no e as amoras mancham-no de negro, mas concede aos silvados a singular fonte do seu fervilhar de luz. Não é possível saber aquilo em que se tornou desde que o descobri.
A corça entre dois saltos gosta de me olhar. Faço-lhe companhia na clareira. Caio lentamente das alturas, não peso ainda senão o que dão a pesar de menos cem mil metros. O lustro apagado que me ilumina mostra os dentes quando afago seios que não escolhi. Grandes ramos mortos os trespassam. As válvulas que se abrem e se fecham num coração que não é o meu e que é o meu coração são tudo o que cantará de inútil numa medida a dois tempos: grito, ninguém me ouve, sonho.
Este deserto é falso. As sombras que escavo deixam aparecer as cores como outros tantos segredos inúteis.
Vou, diz-se, ver. Vou, vê-se, ouvir. O silêncio a perder de vista é o teclado que começa por estes vinte dedos que não existem. Minha mãe é um pião, de que teu pai é o cordel.
Tenho para seduzir o tempo adereços de calafrios, o regresso do meu corpo em si mesmo. Ah! tomar um banho, um banho dos Romanos, um banho de areia, um banho de areia de jumenta! Viver como é preciso saber ligar as veias num banho. Viajar no dorso de uma medusa, à flor da água e mergulhar depois nas profundidades para ter o apetite dos peixes cegos, dos peixes cegos que têm o apetite das aves que gritam para a vida! Já se ouviu cantar as aves pelas quatro horas da tarde em Abril? Estas aves são loucas. Sou eu. Já se viu o Sol cobrir a noite com o seu peso morto, como o fogo cobre a cinza? Tenho como sóis a passagem da chama ao fumo, a queixa enlouquecida de um animal acuado e a primeira gota de água de uma chuvada.
Atenção! Esperam-me. O dia e a noite vão estar na estação. Nunca os reconhecerei se me embaraçar com as malas da justiça.




andre breton e paul éluard
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972



07 janeiro 2008

dores alternadas



à Irene que oiço no amachucar
de sedas que me vão lembrando







Eu penso em ti mesmo
que à tua volta nasçam sementes
Porque sou pelo feitio
de tremenda agudeza como testemunha
de certos males
o percurso idealizado pelo punhal
a ferida aberta para o receber a todo o instante


Eu penso em ti inevitavelmente
como comboios atropelando pássaros
Dobrando sobre o joelho
os pontos cardiais
a quebrar a vingança


Porque sou neste espaço de solidões
o bafo de inventar imagens
na vidraça da janela
(Mas todas as que surgem são já conhecidas e insistentes)


Se não puder mais que pensar em ti
deixo que se me gaste o pensamento
a reduzir sentido por sentido
letra por letra o alfabeto o só
com que nos entendemos


Porque sou o desejo de voltar a andar
pelo colo das pessoas crescidas
a espreitar-lhes para dentro das orelhas


Arrecadar-te-ei sobre a minha infância
que não foi estudada
Mesmo que as rotas perdidas para me cruzarem
se encontrem
Mesmo que tenha de esquecer o vidro
para dobrar o fogo



Porque sou o percurso banal
de todos os pensamentos
feito à conta de esquecer
os que de pensamento se tornaram irrealizáveis


E se te tirarem a nossa máscara?


Guardarei o molde na parede que se me esvai
no sabor a lagos distantes com peixes esquecidos
e penso em ti


Porque sou a lei de puxar as crianças
do recreio do céu
e de desastrado piso-as


Estou a poisar na testa selvagem de qualquer animal
e mostrar ao menos que não há rendição
Ando de gatas procurando o mundo
o equilíbrio de me mascarar de sombra
e partir do momento em que ela passou
a andar de pé e a tomar conta de mim


Onde quer que seja guardarei
metade de tudo sempre que
acreditando que a outra metade nunca

Quis soprar o pó e apaguei
E sou ridículo por adivinhar-te
nos minutos que gastam pó pelas minhas janelas


Cá do colo ouço a espreitar-te
e vivo a monte por entre tantas frinchas de liberdade
nas janelas abertas como orelhas
por onde passam os teus passos
perseguindo-te novamente


Faço secar as flores venenosas
estendidas num vai-e-vem estreito como a guerra
Fico através dos instantes que passam sem mim
com o gosto de esforço inútil
a mastigar areia


Penso em ti inevitavelmente
e sou a faca clandestina
que fez da cidade fatias


Quiseste apagar a vela e desfizeste
o pó que juntei para o meu destino!


Uso a palavra amor
para que ele me chame à morte.












fernando lemos

teclado universal
cadernos de poesia
campo das letras
2004





as árvores









gil t. sousa
as árvores 2007






02 janeiro 2008

obsessão







Recta, fixa, longa, para lá, diante…
E em memória, ainda,
A corneta agreste
Daquele circo equestre…

- Que vida, meu Deus! Que mundo!
Que dolorosa agonia!

… E muito fria,
(Tão fria!)
Corre a estrada para lá…

Só num desvario profundo
Choram palhaços… Quem ria?

Fria
A rua
Continua.
- Quem vem lá?...

Meu Deus, que festa
Foi esta?
Quem se ria já não está.

Só a noite cai, caindo
Dilúvios de luz de estrela…

- E aquela orquestra
Da festa,
Que mentira foi aquela?

- Pobres palhaços,
Pedaços
De gargalhadas caindo,
Repartindo
Gargalhadas!

… E continua irritante,
De dolorosa e calada,
A fita da mesma estrada
Recta e longa para diante…











antónio pedro
devagar (1929)
antologia poética
editora angelus novus
braga
1998