07 fevereiro 2008

a imensidão íntima



O mundo é grande, mas em nós
ele é profundo como o mar. (Rilke)


O espaço sempre me fez silencioso. (Jules Valles, l´enfant)





I

Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio. Sem dúvida, o devaneio alimenta-se de espectáculos variados; mas por uma espécie de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito.

Pela simples lembrança, longe das imensidões do mar e da planície, podemos, na meditação, renovar em nós mesmos as ressonâncias dessa contemplação da grandeza. Mas trata-se realmente de uma lembrança? A imaginação, por si só, não poderá aumentar ilimitadamente as imagens da imensidão? A imaginação já não será activa desde a primeira contemplação? De facto, o devaneio é um estado inteiramente constituído desde o instante inicial. Não o vemos começar; e no entanto ele começa sempre da mesma maneira. Ele foge do objecto próximo e imediatamente está longe, além, no espaço do além (1).

Quando esse além é natural, quando não se aloja nas casas do passado, ele é imenso. E o devaneio é, poderíamos dizer, contemplação primordial.

Se pudéssemos analisar as impressões de imensidão, as imagens da imensidão ou o que a imensidade traz a uma imagem, entraríamos imediatamente numa região da mais pura fenomenologia – uma fenomenologia sem fenómenos ou, para falar menos paradoxalmente, uma fenomenologia que não precisa esperar que os fenómenos da imaginação se constituam e se estabilizem em imagens completas para conhecer o fluxo de produção das imagens. Noutras palavras, como o imenso não é um objecto, uma fenomenologia do imenso remeter-nos-ia sem rodeios à nossa consciência imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão construiríamos em nós o ser puro da imaginação pura. Ficaria então claro que as obras de arte são os subprodutos desse existencialismo de ser imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão, o verdadeiro produto é a consciência dessa ampliação. Sentimo-nos promovidos à dignidade do ser que admira.

Por conseguinte nessa meditação não somos “lançados no mundo”, já que de certa forma abrimos o mundo numa superação do mundo visto tal como ele é, tal como ele era antes que sonhássemos. Mesmo se estivermos conscientes do nosso ser mirrado – pela própria acção de uma dialéctica brutal - , tomamos consciência da grandeza. Somos então entregues a uma actividade natural do nosso ser imensificante.

A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranquilo.

E, já que haurimos nos poetas todo o nosso ensinamento filosófico, leiamos Pierre Albert-Birot, que diz em três versos (2):


E eu me crio com um traço de pena
Senhor do mundo,
Homem ilimitado.

(…)






(1) “A distância arrasta-me no seu exílio móvel”, Supervielle, l´escalier
(2) Pierre Albert-Birot, Les amusements naturels










gaston bachelard
a poética do espaço
trad. antónio de paula danesi
livraria martins fontes
s. paulo
1989




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