28 novembro 2023

nuno casimiro / manifesto

 



 
Falo de um sorriso alastrando-se entre
As mãos,
preenchendo-me de uma ponta à outra do sangue.
Uma tatuagem nos olhos. A fita
suspensa no céu no momento em que recusou cair.
Um corpo esquivo.
 
Palavra que queima.
 
Falo do sal
que me seca os ossos.
Esse sorriso feito gente que eu
amo
mais que às palavras.
 
Falo de ti.
 
 
 
nuno casimiro
apeadeiro, revista de atitudes literárias
nr. 1 primavera 2001
quasi
2001
 




27 novembro 2023

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
V
Nos teus dedos nasceram horizontes
E aves verdes vieram desvairadas
Beber neles julgando serem fontes.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000


26 novembro 2023

joan margarit / o primeiro frio

 

Miguel Blay Fàbregas, The First Cold 1892



Acompanhei-te ao museu do parque.
Era uma manhã de Inverno. Parámos
diante d’O primeiro frio, uma escultura
de mármore cinzento: um velho que, despido,
enquanto o vento arrasta folhas mortas,
fita à distância.
Não são diferentes, a arte e a vida, disseste.
Mas eu via apenas um mármore frio,
e até retórico, e pensava em raparigas.
Entre aquele dia e agora, como um mar,
alastrou a minha vida.
E vêm, sulcando este mar cinzento,
as minhas memórias, cascos negros de navios.
Volto ao museu nesta manhã de Inverno,
e penso em ti ao atravessar o parque,
fitando a distância e cercado
de folhas mortas arrastadas pelo vento.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020



25 novembro 2023

georg trakl / no outono




 
Junto à cerca, os girassóis e seu brilho,
Doentes sentados ao sol, sem alento.
No campo, as mulheres cantam no trabalho,
Ouvem-se ao longe os sinos do convento.
 
Os pássaros contam lendas de encantar,
Ouvem-se ao longe os sinos do convento.
Há um violino no pátio a gemer.
E já o vinho escuro vão recolhendo.
 
Todos parecem felizes, libertos.
E já o vinho escuro vão recolhendo.
Os jazigos dos mortos estão abertos,
Pintados pelo sol que vai entrando.
 
 
 
georg trakl
a alma e o caos
100 poemas expressionistas
trad. joão barrento
relógio d´água
2001
 


 

24 novembro 2023

jorge velhote / bolonha, chuva e menina

 




 
                                                   para Mário Cláudio
 
 
 
No seu peito colegial, coberto de rumorosos plátanos de verona,
abriguei os dedos, a caruma das estrelas,
brancas pombas.
 
A claridade do dia findara; o odor da terra húmida
entardecia coalhando o azul de uns olhos que vindimavam
o sangue, o irisado da alma:
 
chovia. Pelo curriculum do vento partimos, misturando o amargo linho
                                                                                   [dos segredos,
A verdade dos sorrisos.
Por furtivos pomares, inquietos canaviais,
o corpo escondemos, os relâmpagos,
mágoas de silêncio –, prudentíssimas labaredas.
 
Embora chovesse, e muito, o corpo imitava o sol, secava
a erva. Penumbras de sombra a cada passo setembro
mordia de luz, modulava a ternura, intensamente.
Pelos campos, entre o íntimo perfume das vozes, um arado de loucura,
uma lágrima de engenhar sulcos, sementes, folhas, gomos de água,
galhos de melancolia,
 
gerações de chuva, secretos tanques enredando a noite,
a literária morte: o labirinto fulgurante de um versátil estilo
de aprendizagem desmedida.
 
Seduzida, na mão
um ramo de chuva, um jardim
de macerados lábios
 
dedicados.
 
 
 
jorge velhote
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



23 novembro 2023

josé agostinho baptista / regresso

 




 
Há muito que parti.
Abandonei as searas onde nunca vi os
desígnios de deus.
Abandonei a fé.
Caminhei sem destino,
procurei a árvores secreta dos irmãos,
e, com saudade e desvario, abandonei as casas.
 
Escondi-me.
Escondi o último verso numa noite sem fim.
E hoje escrevo para ti que às vezes me escreves,
do outro lado das terras.
Conhecerei um dia as falésias onde o garajau
paira,
quando chegar, pelas madrugada,
às portas do teu sonho?
 
De pé, sobre o promontório,
olhas para longe, para os meus barcos que
naufragaram.
 
 
 
josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006
 


22 novembro 2023

emily dickinson / que nunca há-de alguma vez voltar

 




 

 

Que nunca há-de alguma vez voltar
É o que faz tão doce a vida.
Acreditar naquilo que não acreditamos
Não faz vibrar.
 
Porque se fosse, seria em seu melhor
Um bem ablativo –
Isso o que instiga um apetite
Justamente inimigo.
 
 
 
emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014
 



21 novembro 2023

konstandinos kavafis / o espelho na entrada

 




 

A casa rica tinha no vestíbulo
um espelho enorme, imenso, muito antigo,
comprado há pelo menos oitenta anos.
 
Um perfeito rapaz, aprendiz de alfaiate –
e aos domingos atleta amador –
chegou com um embrulho. Entregou-o
a alguém da casa que o levou p’ra dentro
por causa do recibo. O mandarete
ficou sòzinho à espera ali na entrada.
E foi até ao espelho e começou a ver-se
e a ajeitar a gravata. Uns minutos depois,
trouxeram-lhe o recibo, e foi-se embora.
 
Porém o espelho antigo que já vira,
nos tantos anos em que fora espelho,
milhares e milhares de imagens várias,
ficou contente enfim, cheio de orgulho,
pois recebera em si, dentro de si,
inteira, tal beleza, por instantes.
 
(1930)
 
 
 
constantino cavafy
90 e mais poemas
trad jorge de sena
edições asa
2003


20 novembro 2023

saint-john perse / amargos

 




 

 
1
 
E vós, Mares, que ledes nos mais vastos sonhos, deixar-nos-eis uma noite sobre os rostros da cidade, entre a pedra pública e os pâmpanos de bronze?
 
Mais larga, ó multidão, a nossa audiência nesta vertente de uma idade sem declínio: o Mar, imenso e verde como uma alvorada a oriente dos homens,
 
O Mar em festa nos seus degraus como uma ode de pedra: vigília e festa nas nossas fronteiras, murmúrio e festa à altura de homens – o próprio Mar nossa véspera, como uma promulgação divina…
 
O odor fúnebre da rosa não mais assediará as grades do túmulo; não mais a hora viva das palmas calará a sua alma de estrangeiro… Amargos, os nossos lábios de viventes alguma vez o foram?
 
Vi sorrir aos fogos do largo a grande coisa feriada: o Mar em festa dos nossos sonhos, como uma Páscoa de erva verde e como festa que se festeja,
 
Todo o Mar em festa dos confinas, sob a sua falcoaria de nuvens brancas, como bens de domínio público ou terras de mão morta, como província de erva louca e que foi jogada aos dados…
 
Inunda, ó brisa, o meu nascimento! E que o meu favor se lance no circo de mais vastas pupilas!... as zagaias do Meio-Dia vibram às portas do júbilo. Os tambores do nada cedem aos pífaros de luz. e por toda a parte o Oceano, calcando aos pés o seu peso de rosas mortas,
 
Sobre os nossos terraços de cálcio ergue a cabeça de Tretarca!
 
 
 
saint-john perse
antologia poética
amargos
tradução de carlos cunha e alfredo margarido
guimarães editores
1961
 




19 novembro 2023

jorge luís borges / insónia

  
 
De ferro,
de encurvadas vigas de enorme ferro tem de ser a noite,
para que não a rebentem e a desentranhem
as muitas coisas que os meus olhos repletos já viram,
as duras coisas que insuportavelmente a povoam.
 
O meu corpo enjoou as passagens de nível, as temperaturas, as luzes:
Em vagões de longos caminhos-de-ferro,
num banquete de homens que se enfastiam,
no fio amolgado dos subúrbios,
numa abafada quinta com estátuas húmidas,
na noite repleta onde abundam os cavalos e os homens.
 
O universo desta noite tem a vastidão
do esquecimento e a precisão da febre.
 
Em vão desejo distrair-me do corpo
e dos desvelos de um espelho incessante
que o dissipa e o espreita
e da casa que repete os seus pátios
e do mundo que continua até ao degradado arrabalde
de barro torpe e de becos onde o vento se cansa.
 
Em vão aguardo
as desintegrações e os símbolos que antecedem o sono.
 
Prossegue a história universal:
os minuciosos rumos da morte nas cáries dentárias,
a circulação do meu sangue e dos planetas.
 
(Odiei a água libertina de um charco,
cansei-me ao entardecer com o canto dos pássaros.)
 
As fatigadas léguas sem fim do subúrbio do Sul,
léguas de pampa imunda e obscena, léguas de execração,
não querem ir-se embora da lembrança.
Lotes alagadiços, barracas amontoadas como cães, charcos de prata fétida:
Sou a entediada sentinela desses paradeiros imóveis.
 
Arames, desaterros, papéis mortos, restos de Buenos Aires.
 
Creio esta noite na terrível imortalidade:
nenhum homem morreu no tempo, nenhuma mulher, nenhum morto,
porque esta inevitável realidade de ferro e de barro
tem de atravessar a indiferença dos que estão adormecidos ou mortos
– mesmo que se escondam na corrupção e nos séculos –
e condená-los a uma assombrada vigília.
 
Toscas nuvens cor de borras de vinho hão-de inflamar o céu;
Amanhecerá nas minhas pálpebras apertadas.
 
 
Androgué, 1936
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



18 novembro 2023

italo calvino / as cidades e o céu

 




 

1.
 
Em Eudóxia, que se estende para cima e para baixo, com becos tortuosos, escadinhas, vielas e pardieiros, conserva-se um tapete em que se pode contemplar a verdadeira forma da cidade. À primeira vista nada se parece menos com Eudóxia do que o desenho do tapete, ordenado em figuras simétricas que repetem os seus motivos ao longo de linhas rectas e circulares, tecido de linhas de cores resplandecentes, em que se pode seguir ao longo de todo o bordado o alternar das suas tramas. Mas se nos detivermos a observá-lo com atenção, persuadimo-nos de cada lugar do tapete corresponde um lugar da cidade e que todas as coisas contidas na cidade estão compreendidas no desenho, dispostas de acordo com as suas verdadeiras relações, que escapam ao nosso olhar distraído pelo vaivém pelo bulício pelo tropel da multidão. Toda a confusão de Eudóxia, o zurrar das mulas, as manchas negras de fumo, o cheiro a peixe, é tudo o que aparece na perspectiva parcial que captamos; mas o tapete prova que há um ponto a partir do qual a cidade mostra as suas verdadeiras proporções, o esquema geométrico implícito em cada um dos seus ínfimos pormenores.
 
Perder-se em Eudóxia é fácil: mas quando nos concentramos a fixar o tapete reconhecemos a rua que procurávamos num fio creme ou anilado ou amaranto que através de uma longa volta nos faz entrar num recinto cor de púrpura que é o nosso verdadeiro ponto de chegada. Cada um dos habitantes de Eudóxia compara com a ordem imutável do tapete uma sua imagem da cidade, uma sua angústia, e cada um pode encontrar escondida no meio dos arabescos uma resposta, o relato da sua vida, as voltas do destino.
 
Sobre a relação misteriosa de dois objectos tão diferentes como o tapete e a cidade foi interrogado um oráculo. Um dos dois objectos – foi o responso, – tem a forma que os deuses deram ao céu estrelado e às órbitas em que giram os mundos; ou outro é um reflexo aproximado, como todas as obras humanas.
 
Os áugures já há muito tempo tinham a certeza de que o harmonioso desenho do tapete era de feitura divina; neste sentido foi interpretado o oráculo, sem deixar margem para controvérsias. Mas do mesmo modo se pode tirar a conclusão oposta: que o verdadeiro mapa do universo é a cidade de Eudóxia tal como é, uma mancha que alastra sem forma, com ruas todas em ziguezague, casas que se desmoronam uma sem cima das outras nos tufões, incêndios, gritos nas trevas.
 
 
 
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999


17 novembro 2023

antónio ramos rosa / nunca ninguém escreveu o primeiro poema

 




 
Nunca ninguém escreveu o primeiro poema
que está sempre latente em cada verso
e nunca acontece e não acontecendo
gera o poema que se escreve
 
Esse primeiro poema virtual é uma sombra
que vem sempre por trás e vai adiante
e o seu tremor é o ritmo das sílabas escritas
e é um sangue escuro que obscurece e vivifica o sentido
 
O poeta tem sempre a esperança de escrever um dia
esse primeiro poema e porque não o escreve
sente que nunca escreveu nenhum poema
e vive de estar sempre à beira do escrever
 
Mais do que todos os poemas já escritos
é esse estremecimento de uma sombra que deslumbra
porque tem em si o fogo inicial do gérmen
em permanente iminência sob as palavras que o procuram
 
 
 
antónio ramos rosa
hífen 8 janeiro / 1994
cadernos semestrais de poesia
artes poéticas
1994



16 novembro 2023

helder macedo / viagem de inverno

  
 
Um salto de raposa sobre a estrada
último sol à beira da fronteira.
Depois somente a sombra
duma lua diurna
a câmara dos ecos
e círculos de corvos sobre a neve.
 
Viagem de Inverno
– metáfora fechada deslizando
em espelho opaco
gotícula de sémen
pulsando sobre pele infecundada
sintaxe sem contexto –
 
viagem literalmente de Inverno
literalmente viagem
por estradas escorrendo rios turvos
nas ondas congeladas em montanhas
com troncos encravados
mastros brancos
de frotas soterradas
 
até que muito ao Leste
o hotel aberto
vazio e duvidoso
galo campestre em luxo desplumado
e onde o chefe ia perder a estrela
por exagero de maçã nos molhos.
 
 
 
helder macedo
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986