22 novembro 2010
luis alberto de cuenca / abre todas as portas
Abre todas as portas: a que conduz ao ouro,
a que leva ao poder, a que esconde o mistério
do amor, a que oculta o segredo insondável
da felicidade; a que te dá a vida
para sempre no gozo de uma visão sublime.
Abre todas as portas sem te mostrares curioso
nem ligar nada às manchas de sangue
que salpicam as paredes das habitações
proibidas, nem às jóias que revestem os tectos
e aos lábios que na sombra procuram os teus,
nem à palavra santa que espreita nas ombreiras.
Desesperadamente, civilizadamente,
contendo o riso, secando tuas lágrimas,
no extremo do mundo, no final do caminho,
a ouvir como assobiam as balas inimigas
em volta e como estão cantando os rouxinóis,
não duvides, irmão: abre todas as portas.
Embora não haja nada dentro.
luís alberto de cuenca
tradução de josé bento
canal revista de literatura nr.5
janeiro de 1999
palha de Abrantes
19 novembro 2010
louise glück / paisagem
2.
O tempo passou, transformou tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro bulia.
Se caísses lá dentro, morrias.
Era um tempo
de espera, de acção suspensa.
Eu vivia no presente, que era
a parte do futuro que podíamos ver.
O passado pairava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.
Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.
O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.
O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.
Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.
Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes
não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.
Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.
O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes
não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo
perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.
Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte.
louise glück
paisagem
tradução de rui pires cabral
telhados de vidro
nr. 12 maio 2009
averno
2009
15 novembro 2010
carlos eurico da costa / de vermelho a morte
«o rosto anseia pelo canto»
juan barea, cantaor
I
Se vejo o meu ser compelido — gemo. E oro aum deus de coragem e destino. A terra oferece-me o que quero — o seu corpo, os seus rios, e tenho de encerrar o meu destino, aquele destino, empurrar o braço no gesto que o alcance, dizê-lo.
Rainha do céu, minha terra em ti me contenho, tu limitas-me, és um mundo, esfera que brilha no rosário, semente de consolação. Não me alonges, leva-me (chega-me) ao teu seio, deixa, deixa contaminar-te do meu suor, queria renegar mas volto de novo a habitar-te.
juan barea, cantaor
I
Se vejo o meu ser compelido — gemo. E oro aum deus de coragem e destino. A terra oferece-me o que quero — o seu corpo, os seus rios, e tenho de encerrar o meu destino, aquele destino, empurrar o braço no gesto que o alcance, dizê-lo.
Rainha do céu, minha terra em ti me contenho, tu limitas-me, és um mundo, esfera que brilha no rosário, semente de consolação. Não me alonges, leva-me (chega-me) ao teu seio, deixa, deixa contaminar-te do meu suor, queria renegar mas volto de novo a habitar-te.
II
Que morte apetecida, que boca soluçante pela manhã. Flores a corolar a caveira de cristal e azul. Flores de laranja e metal. Garganta golpeada no canto. Leque de madeira rara e marfim flamejando na cabeça negra, branco, cinza.
O acto de dizer, de não querer a minha vergonha. Trago o meu destino — um sal que me consome — em invenções de mal, sentado no meu trono, despedaçando o reino.
Anavalhe-se o que sobra, em fenda alastrada pelos tecidos, cante-se com coragem e sangue contraindo a vocalidade, os destinos mais estranhos da nossa condição: o que nasce no corpo, o que amamenta a imaginação, célula cerebral, leite da terra — logo, um minério hoje descoberto, a aberração da memória. A morte.
carlos eurico da costa
colóquio letras nr. 12
março 1973
fundação calouste gulbenkian
1973
O acto de dizer, de não querer a minha vergonha. Trago o meu destino — um sal que me consome — em invenções de mal, sentado no meu trono, despedaçando o reino.
Anavalhe-se o que sobra, em fenda alastrada pelos tecidos, cante-se com coragem e sangue contraindo a vocalidade, os destinos mais estranhos da nossa condição: o que nasce no corpo, o que amamenta a imaginação, célula cerebral, leite da terra — logo, um minério hoje descoberto, a aberração da memória. A morte.
carlos eurico da costa
colóquio letras nr. 12
março 1973
fundação calouste gulbenkian
1973
12 novembro 2010
antónio ramos rosa / que cor ó telhados de miséria
Que cor ó telhados de miséria
onde nasci
de tanta pequenez de tão humildes ovos
de nenhum querer
a que horas nasceram as estrelas que
um dia foram
a que horas nasci?
Não vim embarcado não me encontrei
na rua
não nos vimos
não nos beijámos
nunca parti
Não sei que idade tenho
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985
11 novembro 2010
cruzeiro seixas / ao que encontrei tanto e tanto
Ao que encontrei tanto e tanto
acrescentei.
Recordo essas horas esses dias.
Tudo o que era morto ressuscitava
os animais encontravam-se
e altos monumentos brancos cresciam em cada praça.
O nosso sangue circulava livre nas montanhas e no mar
e os músculos erguiam árvores
que nos cobriam com a sua ilimitada confiança.
Nós todos éramos dois.
Um dia queimamos o fundo do mar
e o incêndio alastrou às vagas absurdas
ao sangue misterioso.
Estavas pálido como a água
jamais alguém empalideceu assim.
Que horas eram meu amor distante?
Ao que encontrei tanto acrescentei
nesta tarde exageradamente tranquila.
cruzeiro seixas
o que a luz oculta
arte e manifesto, galeria
porto
2000
09 novembro 2010
nuno vidal / lachrimae coactae
A locusta sagrada vinha pela noite
rilhava a esperança posta para amanhã
nas pancadas repetidas das gelosias.
O pulso apertava o fim sem chegada
mas que fazia morrer cada dia
tinha
de haver sempre para quê?
Aqui era a decrépita restaurada mão
aleivosa do amor a dobrar-nos
no cadafalso, com escarninha mesura.
Pelo soalho cotão, o cheiro
restado dos lençóis, doçura
tudo em rodilha, cinza, exaltação.
Pelo lento valado do verão
de tentearmos encontros, as vésperas
num visco enorme de sol tardio
julgando cada dia por roubado
ao destino que não pertencia
e corria por outro regato.
Meu Deus, a tua sede cortada.
Tens sempre o teu albergue, os teus
inestimáveis bens comungados
e porém. Os espoliados d´aquém
mar, que diabo os carregue?
Mas não fiques, não oiças
não quero, eu só quero que
a noite não suceda.
Eu desamparo-te o foral eu
nem vale que me cale
quedo-me sem pátria que nem
tinha e houvera unhas tangia
uma canção de protesto triste.
nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
06 novembro 2010
gil t. sousa / era um passo novo
27
era um passo novo
um timbre de rua nova
numa cidade calada
a tua mão na água dormente
a dança do teu olhar
sobre o peso
do tempo sábio
segui-te o sonho
como uma ave
e regressei
ainda mais só
gil t. sousa
falso lugar
2004
04 novembro 2010
manuel francisco t. / não te esqueces?
veneza é um peixe obscuro
inventado por ticianos náufragos.
a peste ensinou-nos na pele ver
a última tela víbora imagem
do bispo. em gelos esquecidas
ardem estas estátuas o corpo
veneziano, peixe que em
nós se instala.
deixa-o vir, disse. a espia doce
aceitou no hotel dês avenirs
refúgio gnóstico d´enviados espaciais.
deixa, sim, um aeroplano destes tudo
será, raiz e lenta lágrima, ele
em jardins saberá. eu digo-lhe.
manuel francisco t.
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990
02 novembro 2010
sophia de mello breyner andresen / a escrita
No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho
Lord Byron usava as grandes salas
Para ver a solidão espelho por espelho
E a beleza das portas quando ninguém
Passava
Escutava os rumores marinhos do silêncio
E o eco perdido de passos num corredor
Longínquo
Amava o liso brilhar do chão polido
E os tectos altos onde se enrolam as sombras
E embora se sentasse numa só cadeira
Gostava de olhar vazias as cadeiras
Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital
Mas a escrita exige solidões e desertos
E coisas que se vêem como quem vê outra coisa
Podemos imaginá-lo sentado à sua mesa
Imaginar o alto pescoço espesso
A camisa aberta e branca
O branco do papel as aranhas da escrita
E a luz da vela – como em certos quadros –
Tornando tudo atento
sophia de mello breyner Andresen
ilhas
caminho
2004
31 outubro 2010
miguel serras pereira / talvez um barco
Podia dizer-to agora mesmo
mas do silêncio já nada me separa
ou só o tempo lento ainda de um momento
uma palavra só sem mais cansaço
Será talvez um barco se fores tu
- a chuva da manhã nos vidros limpos
e o vulto esguio perdido duna a duna
de quem regressa apenas de partida
Um pássaro esquecido brilha ainda
em dois olhares levemente embaciado
pela mesma indecisa febre antiquíssima
Podia dizer-to agora mesmo
E talvez seja um barco se fores tu
- ou serei eu talvez se for o mar
miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993
28 outubro 2010
gonçalo m. tavares / chão
Não há limite que não seja por ele suportado.
Suporta todo o cansaço. Traições, fadiga, falhanços.
Aconteça o que acontecer tens um corpo que pesa;
e um chão, mudo, imóvel, que não desaparece.
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
26 outubro 2010
fernando pessoa / o andaime
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!
Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.
A 'sp'rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha 's'prança,
Rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam - verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!
Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.
Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças -
Mortas, porque hão de morrer.
Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser - muro
Do meu deserto jardim.
Ondas passadas, levai-me
Para o alvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.
fernando pessoa
revista presença
1931
24 outubro 2010
jorge velhote / piazza s. marco
A sabedoria é para os barcos
sob as pontes da noite,
a alma, o oiro.
Aqui dormiria, à distância singular
de um beijo, um lençol de água,
um travesseiro de cuidada pedra.
Outras coisas da infância, mas devagar, outros corpos a penumbra percorrendo,
a poeira da luz espiando os sapatos, a navalha chamuscada.
Também eu herdei a perigosa ilusão
da bicicleta, um silêncio
danado por mulheres, pelo ardor cristalino do álcool,
no limbo mais rasgado do mundo;
o segredo tão natural da pintura
na profecia azul dos mosaicos,
no carvão amargo da noite;
certos vestígios pelo tráfico outrora florescente:
sedas, frutos, tabaco, pequenos tesouros,
caixinhas de laque, sandálias
gastando, dia após dia, a mágoa.
Que posso fazer pelas pedras desta praça senão
cobri-las de aves, trapos, moedas
e pela poalha do crepúsculo seduzir os vitrais,
os óleos santos, o sândalo, o bolor intenso das paredes?
Cambiar a chuva pelos claustros do vento, o vidro
de oficiante fogo, como
em Murano a família Barelli?
Que poderei comprar para o vazio
deste anoitecer? um pouco do meu sol?
daquele mar, um punhado de areia?
jorge velhote
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
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