31 março 2025

juan luis panero / a memória e a morte

 
 
 
     Só são tuas – na verdade – a memória e a morte,
a memória que apaga e desfigura
e a sombra da morta que aguarda.
Só lembranças fantasmais e o nada
repartem entre si tua herança sem destino.
Depois de contratos sórdidos, mentiras,
de gestos inoportunos e palavras
– irreais palavras ilusórias -,
só um testamento de cinza
que o vento move, espalha e desordena.
 
 
 
juan luis panero
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé bento
assírio & alvim
2001





 

30 março 2025

e. m. de melo e castro / aí estás

 
 
 
Aí estás. Solitária entre o pó e os homens,
transposta mas presente, construída
de tão pequenos pensamentos e de tão
leves quase ilusões dos teus sentidos.
 
Aí estás e não nos tens lembranças,
nem te lembramos, nem te esquecemos,
nem a presença em que estás é nossa
e no entanto és tu.
 
Para sempre as nossas mãos são actos
do teu querer.
 
Para sempre os nossos ideais são destroços
de ti.
 
Aí estás.
Para sempre a nossa ignorância
és tu.
 
 
 
e. m. de melo e castro
ignorância da alma (1956)
antologia da novíssima poesia portuguesa
livraria moraes editora
1971
 



 

29 março 2025

maria alberta menéres / meditação

 
 
 
XXXII
 
Fechei os olhos, para ver melhor
tudo o que a luz me negava!
– E quando o sono chegou
antes da revelação,
senti a minha alma paralela
como as grades que um jardim
desenha, às vezes, no chão…
 
 
 
maria alberta menéres
intervalo 1952
poesia completa
porto editora
2020
 




28 março 2025

david mourão-ferreira / infinito pessoal

 
 
 
Como se de repente ao coração do Sol
as raízes da luz alguém as arrancasse…
Como se de repente as hélices do vento
arranhassem o ar, e o Mar estivesse perto…
Como se de repente o Mundo entontecesse…
 
Foi tudo de repente e tudo ao mesmo tempo:
escuridão, rumor, frescura, movimento.
 
Mas de entre as espirais confusas quem sabia
Se era de novo amor, se era só melodia?
 
 
 
david mourão-ferreira
lira de bolso
publicações dom quixote
1971




27 março 2025

mário de sá-carneiro / quasi

 
 
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
 
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quasi vivido...
 
Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim - quasi a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
 
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
– Ai a dor de ser - quasi, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
 
Momentos d’alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
 
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
 
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
 
……………………………………………………..
……………………………………………………..
 
 
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe d’ asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
 
Paris 1913 – maio 13
 
 
 
mário de sá-carneiro
poemas
biblioteca editores independentes
assírio & alvim
2007





26 março 2025

miguel torga / fronteira

 
 
De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente, doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo céu os olha e os consente.
 
O mesmo beijo aqui, o mesmo beijo além;
Uivos iguais de cão ou de alcateia.
E a mesma lua lírica que vem
Corar meadas de uma velha teia.
 
Mas uma força que não tem razão,
Que não tem olhos, que não tem sentido,
Passa e reparte o coração
Do mais pequeno tojo adormecido.
 
 
 
miguel torga
libertação
1944
poesia completa vol. i
dom quixote
2007




25 março 2025

josé de almada negreiros / a um poeta que morreu

 
 
 
Sou eu o que está atrasado
tu já te despediste
– a verdadeira despedida –
o silêncio já fala por ti
e eu ainda tenho para dizer.
 
Por mim o silêncio ainda não fala,
a vida ainda me dá a palavra
e cá estou eu para me embaraçar
e todos embaraçar no meu novelo.
 
Violenta deusa, ó Serenidade,
que tão tumultuosos nos trazes em buscar-te,
a tua exigência só à Morte aproveita!
 
Cegos por ti, ó Serenidade,
escalamos os dias, dia a dia,
e a memória não relê
ao que a morte pôs ponto-final!
 
Mas finalmente entendo por que o Sol
anda por vales e por montes
semeando cores parecidas,
acesas, luminosas, vivas,
por onde nós vamos passando!
Do princípio ao fim
os braços sempre erguidos
as mãos no fim dos braços
por cima das mãos o ar
e depois ponto-final.
 
 
 
josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017




24 março 2025

cesário verde / contrariedades

  
 
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
     Consecutivamente.
 
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
     E os ângulos agudos.
 
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
     E engoma para fora.
 
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
     Mal ganha para sopas...
 
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa d’um jornal me rejeitar, há dias,
     Um folhetim de versos.
 
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais d’uma redação, das que elogiam tudo,
     Me tem fechado a porta.
 
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
     Vale um desdém solene.
 
Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
     Diverte-se na lama.
 
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
     Me negam as colunas.
 
Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
     Deliram por Zaccone.
 
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
     Do que escrever em prosa.
 
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
     Os meus alexandrinos...
 
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
     E fina-se ao desprezo!
 
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
     D’uma opereta nova!
 
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
     Impressas em volume?
 
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
     Todas as minhas obras
 
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
     Que mundo! Coitadinha!
 



cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024





23 março 2025

luís vaz de camões / aquela triste e leda madrugada



 
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.
 
Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se d’üa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.
 
Ela só viu as lágrimas em fio,
de que d’uns e d’outros olhos derivadas
s’acrescentaram em grande e largo rio.
 
Ela viu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.
 
 
luís de camões
poesia lírica
ulisseia
1988
 




 

22 março 2025

camilo pessanha / porque o melhor, enfim




 

Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!
 
– Sorrindo interiormente,
Co'as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. –
 
Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano...
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.
 
Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.
 
Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva
 
Que Abril copioso ensope...
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.
 
Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício
 
Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas...
 
Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,
 
Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos...
 
Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranquilas,
Em brutos pugilatos
Fraturam-se as maxilas...
 
E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.
 
 
 
camilo pessanha
clepsydra
assírio & alvim
2003
 




 

21 março 2025

bertolt brecht / os tempos modernos




 
Os tempos modernos não começam de uma vez por todas.
Meu avô já vivia numa época nova,
Meu neto talvez ainda viva na antiga.
 
 
A carne nova come-se com velhos garfos.
 
 
Época nova não a fizeram os automóveis
Nem os tanques
Nem os aviões sobre os telhados
Nem os bombardeiros.
 
 
As novas antenas continuaram a difundir as velhas asneiras.
A sabedoria continuou a passar de boca em boca.
 
 
 
bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976







 

20 março 2025

anna akhmatova / no quadragésimo ano

 
 
 
1.
 
Quando sepultam uma época,
O salmo fúnebre não soa,
Às urtigas, aos cardos
Caberá enfeitá-la.
E apenas os coveiros vivazes
Trabalham. As coisas não esperam!
E um silêncio, Senhor, um silêncio tal
Que se ouve o tempo passar.
Mas depois ela assoma,
Como um cadáver no rio primaveril, –
O filho, todavia, não reconhecerá a mãe.
E o neto desviará os olhos com enfado.
E as cabeças inclinam-se mais,
Como um pêndulo a lua move-se.
 
E eis – sobre Paris tombada
Agora um silêncio destes.
 
5 de Agosto de 1940
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003
 




19 março 2025

antónio franco alexandre / esta esquisita prova me tentou

 
 
 
esta esquisita prova me tentou
de tecer um rumor em muros de água
ossos de terra calcinada
o jugo
 
culpado me castigo com engenho
e da voz desenhada o artifício
restos de pele antiga
no laço da armadilha
 
em silêncio me muro e me demoro
no cálculo de rotas inexactas
 
um duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente.
 
 
 
antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983
 



18 março 2025

luís miguel nava / contra os flashes

 
 
 
É terra doutro o corpo dum rapaz, o leite amarrotado nele o incêndio corre contra os flashes, mínimo relâmpago de terra o poço da alegria.
 
As paisagens os miúdos reúnem-nas à mão, a miniatura delas é o seu rosto. Voltam-se as paisagens como as páginas.
 
Um deles, força macia, ensanguentado e verde inquina-se na luz, uma fralda de incêndio há-de escorrer-lhe pelos lábios.
 
Eis o rosto, eis o poço, põem-se as imagens como toalhas, as pequenas pedras deflagrando.
 
Os miúdos a nudez destrói-os nesses lábios.
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 




17 março 2025

isabel meyreles / o livro do tigre

 
 
 
                       II
 
Existe em Lisboa
uma máquina cruel
que permanentemente aguça
os dentes virtuais
na alma indecisa
dos pobres mortais.
Esta máquina excepcional
tritura
esmaga
sacode
revolve
molda
anula
e expulsa
o quê?
Capachos.
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004




 

16 março 2025

inês lourenço / crónicas




 

 
Mulheres de canastra à cabeça, que num recôncavo
de esquina, não calcetada, onde uma nesga
de terra desmentia o urbanismo
invasor, mijavam de pé
com rara pontaria dissimulando
entre as grossas saias, as
pernas afastadas. Não usavam cuecas
tal como uma modelo da Vogue,
cujo profundo decote dorsal,
prolongado abaixo da cintura,
as abolia.
 
Coincidências
da baixa plebe
e da alta-costura.
 
 
 
inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015
 



 

15 março 2025

filipa leal / os velhos são manhosos

 



 

 

Os velhos são manhosos.
 
Demoram-se a apanhar a fruta, sabem
que sabem esticar o braço antigo até aos primeiros figos,
que podem saber chegar ao fim da figueira.
Os velhos arrastam os pés em direcção à saída,
esgotam-se ao sol seguinte.
Cortam-se por vezes no vidro de emergência,
no buraco para o exterior.
Têm visões extraordinárias,
Receitas específicas para o barroco do poema
e do mel.
 
Escrevo para os velhos.
 
 
 
filipa leal
vem à quinta-feira
assírio & alvim
2016

 




14 março 2025

antónio gancho / começo logo de manhã

 
 
 
COMEÇO LOGO de manhã
a fazer o poema
e o sol nasce e abre o tema
não é meu lema escrever o sol
mas é meu lema escrever o poema
para o poema inspiro-me em ti
para o nascer do sol também previ.
o poema és tu
ao sol nu.
a natureza avança
são já horas vou acabar
escrever poesia cansa
e tu estás-me a pensar.
dança o dia quase pronto
escrever o poema cansa
e eu conto e cansa-me o que eu conto.
o poema és tu
o sol nasce
é manhã
nu.
 
 
 
antónio gancho
poemas digitais (jun. / jul. 89)
o ar da manhã
assírio & alvim
1995




13 março 2025

armando silva carvalho / soneto

 
 
 
Não há que descobrir ó Luiz Vaz
que vejo num retrato destroçado
se as tuas diatribes de rapaz
são parte acidental do mesmo Fado
 
que qualquer sabe do que é capaz
ao mentir tanto e tanto andar parado
nas paredes do tempo arrepiado
daquilo que se fez ou não se faz
 
quando chegado o tempo dos sem versos
de espelhos para espelhos se passeia
o percurso dos meus olhos perversos
 
que são estas palavras já de areia
distintas também elas dos diversos
sentidos que ninguém nada nomeia
 
 
 
armando silva carvalho
alexandre bissexto, 1983
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007
 



12 março 2025

antónio josé forte / o degolado

 
 
 
O degolado que dizia
que ficara sem cabeça
por causa da poesia
 
o degolado que gritava
por causa da mulher
que era quem mais amava
 
o degolado que gemia
por causa do silêncio
que à sua volta havia
 
o degolado que parecia
que quanto mais calava
mais ele enrouquecia
 
o degolado que sorria
com a língua de fora
e uma lágrima de alegria
 
o degolado que ainda olhava
mas que já não via
a morte que o matava
 
o degolado de olhos tortos
e revirados para o céu
como os de todos os mortos
 
 
 
antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
2003




11 março 2025

gonçalo m. tavares / o sol

 
 
 
Na infância o sol era um companheiro mais alto,
Que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
Guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
Como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
Aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
Que os meninos agarravam com os dedos e cuja
Intensidade podiam por vontade própria regular.
Por exemplo: quando a luz era excessiva
Os dedos protegiam os olhos. Outras vezes
O corpo parecia a conclusão
Natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
Recebíamos o sol como o ponto final recebe
Uma frase. Fazia mais sol quendo eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
Me fui distraindo?
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004




 

10 março 2025

fernando alves dos santos / lenda das donzelas presas

  
 
Na memória das pequenas povoações
reencontra-se o cântico
que incendeia o restolho
onde se acoitam as bruxas.
Ouvem-no as pessoas imóveis
junto ao eremitério
construído sobre os cadáveres dos soldados
que ali morreram na resignação
às ordens dos generais.
 
As donzelas cantam o deserto que amamentam
nos seus cabelos compridos.
As donzelas cantam nas janelas das prisões.
 
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005





09 março 2025

fernando assis pacheco / sem que soubesses

 
 
 
Falei de ti com as palavras mais limpas,
viajei, sem que soubesses, no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.
 
Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei da parcimónia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.
 
Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando sem que soubesses, por tudo o que fazias.
 
 
 
fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019
 



08 março 2025

fernando lemos / fiz uma rosa contemporânea

 
 
Fiz uma rosa contemporânea
com um compasso
 
não cheira
nem sonho com ela
 
Fiz um sonho com duas linhas
mas não acordo
nem sinto os olhos
 
fiz um quadrado
com a rosa dentro
nas duas linhas
 
e estava escrito o meu desalento
 
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




07 março 2025

izidro alves / uma vez por ano

 




 

 
Uma vez por ano no mesmo mês
Regressamos à casa onde nascemos:
Limpamos o pó dos retratos
Tiramos as aranhas dos candeeiros
Abrimos as janelas mais pequenas
Espirramos e tossimos como antigamente.
 
Olhamos um para o outro
E nos olhos de cada um
Vemos os olhos de todos os mortos.
Sem nada para dizermos
Falamos com as mãos sujas
Da nespereira a bater na janela.
Como da última vez
Deixamos a luz acesa.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025



06 março 2025

albano martins / quatro haikais

 
 
 
1.
Se houve um paraíso, foi
Depois, quando a maçã
Foi mordida.
 
2.
A cabeça da lua
entre as coxas.
O sexo do luar.
 
3.
Solitários, solidários
ambos – Hermes
e Afrodite.
 
4.
A um passo
da luz fulguram,
grávidas, as espadas.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
entre a cicuta e o mosto (1992)
glaciar
2021
 


05 março 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
 
VIII
 
Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.
 
Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




 

04 março 2025

antónio osório / amo os teus defeitos

 
 
 
Amo os teus defeitos, e tantos
eram, as tuas faltas para comigo
e as minhas; essa ênfase
de rechaçar por timidez; solidão
de fazer trepadeiras, agasalhos
para velhos, depois para netos;
indulgência de plantar e ver
o crescimento da oliveira do paraíso,
carregada de flores persistentemente
caducas; essa autoridade, irremediável
desafio; e a astúcia
de termos ambos quase a mesma cara.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
os cavalos de tróia
editorial presença
1982
 



03 março 2025

fátima maldonado / crepúsculo

 
 
 
II
 
Depois de te vazares
até secar na pele o recôndito veio
os opalinos rios desaguando baixo
enquanto te vigio à espera se abrandeces
surgem-me casas brancas
pilastras sucessivas
na funda quadratura de pátios sequestrados
mosaicos pontuando as salas de referências.
Nas báquicas volutas
as vides
policromam o chão de amores mais que suspeitos
engalanecem sobre os ângulos do repasto.
Enquanto recostado sopesas minha pele
e buscas na textura
o teu filão cativo
de forma terminante na rede alveolar,
como na mina o escravo avidamente passa
o dedo sobre o aurífero seio,
e firme o teu perfil moreno destacavas
no ocre da parede
sentindo o fresco chão inscrever-se na túnica,
eu te seguia o rasto
adivinhando na boca contraída
o rictus do desejo.
Gemias ao roçar-te a face contra os pés,
o estribo os magoou na última campanha
(a cativa mantém do saque
a cicatriz na nuca
e disfarça-a pousando por sobre o violeta
da zona contundida
o pente de coral que de manhã lhe deste)
A língua essa ficou-me oferta numa taça.
Numa noite de Maio
beberas talvez em demasia
de um torvo vinho acre
ao resguardo da brisa diluente
numa nave fenícia,
à volta celebravam com gritos a vitória,
apenas dois lugares no áspero parlamento,
lambia-te a barriga e comentava
o mundo circundante
um convidado atónito
soltou um vivo repto:
«Cave amantem».
Viraste a cabeça e vi por dentro a raiva
embravecer-te a boca.
Pediste na toalha a lâmina de prata.
No cabo cinzelado Artemísia sulcava
um mar de contusão.
Mandaste sossegar a trémula cabeça,
um golpe seccionou a língua virulenta.
Enquanto não estancou o sangue nessa noite
deitada no sombrio reduto das escravas
sentindo sobre o corte
pesar fresca mistura,
(uma velha tentara amordaçar a veia)
não pensava senão na próxima vingança.
Mas ao amanhecer
quiseste transportar-me
ao linho dos lençóis,
na cama desenhavam grinaldas tumulíneas
e a chama do azeite
enchia o ambiente.
Adormeci.
O teu olhar fitava dum Sileno
a face na parede
e uma mulher alada
dissecava à escuta
as fibras do mistério.
No tumulto de um sono
Em sobressalto
sentia a tua mão,
(o sangue junto às unhas grudou um lodo denso)
serena percorrer desimpedindo as vias,
projectos de cravar
entre os ossos do externo
adagas caldeadas em forjas escandecidas.
 
E enquanto assim medito
um pombo cinamomo
num nicho segredeia
dando à ninfa saprófita ali em vigilância
relatos em detalhe das ruas destruídas
notícia da chacina
que impende sobre os prédios
os contos do abate às roxas cercaduras
o saque reiterado nos frisos de uvas pretas
a desfolha das rosas
os caules de narcisos
a esmagada flor solta do azulejo
as novas da matança que grassa na cidade.
 
 
 
fátima maldonado
os presságios
os alicerces
editorial presença
1983



02 março 2025

antónio ramos rosa / amamos num vislumbre

 
 
 
Amamos num vislumbre terra suspensa
chamamos limiar a esta chama
e uma ideia de fogo branco habita o pulso
um vaso negro irradia sobre o branco
 
Amamos o limiar o pólen dos mortos
na sombra desta palma deste odor de chama
chamamos alta a esta chama nua
E é uma mulher direita imóvel nua
 
Amamos esta terra esta sombra da mão
amamos esta escrita de água e dança obscura
caminhamos contra o hálito da noite
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985




01 março 2025

paul strand / elegia pelo meu pai

 
 
2 -  RESPOSTAS
 
 
Porque viajaste?
Porque a casa estava fria.
Porque viajaste?
Porque é o que sempre fiz entre o crepúsculo e a aurora.
O que vestiste?
Vesti um fato azul, uma camisa branca, uma gravata amarela e
                                                                         meias amarelas.
O que vestiste?
Não me vesti. Um lenço de dor manteve-me quente.
Com quem dormiste?
Dormi com uma mulher diferente em cada noite.
Com quem dormiste?
Dormi sozinho. Dormi sempre sozinho.
Porque me mentes?
Sempre pensei que te dizia a verdade.
Porque me mentes?
Porque a verdade mente como nenhuma outra e eu amo a verdade.
Porque partes?
Porque nada significa já muito para mim.
Porque partes?
Não sei. Nunca soube.
Quanto tempo deverei esperar por ti?
Não esperes por mim. Estou cansado e quero descansar.
Estás cansado e queres descansar?
Sim, estou cansado e quero descansar.
 
 
 
paul strand
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 2 primavera 2002
tradução José luís peixoto
edições quasi
2002