31 maio 2024

eduarda chiote / equívocos

 



 
Repetimo-nos.
E à força demolidora do quotidiano
vamos entregando a subtileza
da pele e o apagar dos astros: a servidão – esse
congénito equívoco.
 
E o gelado assombro das presenças
que nos colocam na fronte o tríplice sinal de
lucidez.
 
E nenhuma idade
a tal horror é poupada. Porque, e para além
do pó e o apodrecer das cinzas,
nem mesmo, acredita, a brutal invenção
do espírito.
 
 
 
eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001



30 maio 2024

sandra costa / manual da vida breve

 
 
8.
 
Desconheço o que vai para além
do cheiro das flores, o que vai para além
do sol abrindo as manhãs entre nuvens,
o que vai para além dos musgos crescendo
em telhados abandonados, o que vaia para
além das sombras que se encontram
 
 
 
sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021
officium lectionis edições
2021





 

29 maio 2024

nuno guimarães / palavras que rebentam

 



 
Palavras que rebentam. Aflorando
a pedra, a solidão, deslizam, vagas,
gramaticais, roendo inconformadas
as arestas, o atrito, puras. Quando
 
nos líquidos, no éter, na distância,
diluem-se e morrem acabadas.
Não nos corpos, nas rugas, nas arcadas:
combatem, rumorosas, cal e cântico.
 
É difícil atarem corpo e vida
aos que vivem e morrem subjacentes
subjazendo, talhados para mina.
 
Mas despertadas, bem ou mal medidas,
rebentam em ogiva, funcionais
chamas supostamente adormecidas.
 
 
 
nuno guimarães
as palavras
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024
 
 
 

 


28 maio 2024

luís quintais / com o tempo




 
Compassos bem medidos desfazem-se.
Partículas radioactivas decaem.
 
Alguns medem forças
que se aniquilam reciprocamente.
 
Quando o frio os invade,
aquecem-se com gestos abrasivos.
 
As mãos fecham-se
sobre frondes e iluminações.
 
Aos que cultivaram desertos,
só lhes restaram desertos.
 
 
 
luís quintais
nocturama
assírio & alvim
2024



 

27 maio 2024

eugénio lisboa / inventário de perdas



 

 
Vai-se, com o tempo, perdendo tudo.
Perdi já tantos dos que tanto amava,
perdi sítios, perdi sóis, sobretudo,
perdi poderes, ilusões, e brava
 
força que punha, no lutar, fervor!
Perdi livros e haveres e tudo
o que à vida dá tanto sabor!
Meu canto triste foi ficando mudo,
 
ao ver, por todo o lado o atropelo,
o assalto ao poder da liberdade,
o pôr, na destruição, tanto zelo!
 
Por todo o lado, alastra a iniquidade
e a vida cada vez mais fenece,
neste pobre mundo que anoitece.
 
19.03.2022
 
 
 
eugénio lisboa
poemas em tempo de guerra suja
guerra & paz
2022




 

26 maio 2024

david mourão-ferreira / serenata do adolescente



 

 

Que doentia claridade
a que me invade e me obsidia,
durante a noite e à luz da tarde,
à luz da tarde, à luz do dia!
Que doentia aquela grade
de insone e ténue claridade,
sob a avançada gelosia!
 
Passo na rua e nada vejo
senão a luz, a luz e a grade.
Ó lamparina do desejo,
porque ardes tu até tão tarde?
E às vezes surge, entre a cortina,
aquela sombra vespertina
que me retém nesta ansiedade.
 
 
 
david mourão-ferreira
lira de bolso
publicações dom quixote
1971




 

25 maio 2024

anacreonte / fragmento




 
Deita-me água, rapaz, deita-me vinho;
e tece-me grinaldas de mil flores.
Meu coração arrisco, depois disto,
para lutar então com o próprio Amor.
 
Fragmento 396 Page
 
 
 
anacreonte
vozes da poesia europeia – I
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 163
janeiro - abril 2003
fundação calouste gulbenkian







 

24 maio 2024

francesco petrarca / soneto

 



 

Onde colheu Amor o ouro, e de que veio,
para tecer tais tranças assim louras?
E de que espinho as rosas? E as ondas
de que praia as torou pra suas veias?
 
Onde pérolas tais em que vicejam
doces palavras, puras, peregrinas?
Onde tanta beleza, e tão divina,
dessa fronte que ao céu provoca inveja?
 
De que arcanjos provém, e de que esfera,
seu celeste cantar que me consome
o que, não consumido, já é pouco?
 
E de que sol nasceu a luz eterna
dos olhos seus, que paz e guerra movem,
calcinando-me o peito em gelo e fogo?
 
 
«Onde tolse Amor l’oro, et di qual vena…»
 
 
 
francesco petrarca
vozes da poesia europeia – II
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 164
maio - agosto 2003
fundação calouste gulbenkian





23 maio 2024

gabriele d’ annunzio / meio-dia

 



 

 
No seu auge o dia.
Sobre o mar etrusco
paira um verde pálido
como o dessepulto
bronze das estátuas.
Tudo tão tranquilo
que à roda não vibra
nem da brisa o hálito;
sequer um arbusto
se move na áspera,
solitária praia.
 
Bonança, calor,
em tudo silêncio.
O Verão, maduro,
cobre-me a cabeça,
como sendo um fruto
que a mim me pertença,
e colher eu deva
com a minha mão,
e sugar eu deva
com a minha boca.
Nem um só vestígio
de humana presença.
Nada que se ouça,
se me ponho à escuta.
Longe a dor dos homens.
Nem já tenho nome.
Sinto que o meu rosto
se doura de um ouro
que é meridiano;
e que a minha loura
barba já reluz
como a própria areia.
Mesmo o delicado
desenho da onda
na orla da praia
me está no palato,
na palma da mão
regendo-me o tacto.
Toda a minha força
na areia se expande,
no mar se difunde:
minha veia, o rio;
minha fonte, o monte;
o bosque, o meu púbis;
meu suor, a nuvem.
E vivo na flor
de esteva das dunas,
nas pinhas, nos bagos
dos juncos; nas algas,
na flora marinha;
nas coisas exíguas,
nas coisas imensas;
na areia contínua,
de cumes longínquos.
Só ardo e rebrilho.
E nem tenho nome.
Montanhas e ilhas,
bosques e baías
perderam os nomes
que outrora lhes dei
ou tinham outrora
em lábios humanos.
E eu próprio sem nome
nem destino humano:
já só Meio-Dia
agora me chamo.
Vivo em tudo, tácito,
tal e qual a Morte.
 
Toda a minha vida
se tornou divina.
 
«Meriggio», vv. 1-10, 55-109
Alcyone (1904)
 
 
 
gabriele d’ annunzio
vozes da poesia europeia – III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 165
setembro - dezembro 2003
fundação calouste gulbenkian





22 maio 2024

ana paula inácio & sandra costa / menos uma hora nos açores

 
 
 
11.
 
Foi no último verso que me perdi.
Nessa última nuvem onde a morte
já não é matéria nem sequer
possibilidade capaz de desarrumar
a ordem natural das coisas.
Nessa última nuvem onde todos
os vocábulos são exílios
e nem com pássaros
dobras as margens dos rios
ou as árvores em flor
construindo paisagens.
Nessa última nuvem onde te abeiras
do tempo derramado
sobre o leito
das aparências
e tudo quanto é distância
ou a inconveniência do amor
se compõe como um equívoco.
 
 
 
ana paula inácio & sandra costa
menos uma hora nos açores
volta d´mar
2022



21 maio 2024

martín lópez-vega / relação de reparações efectuadas na igreja do bom jesus de braga em 1853 segundo consta da fatura do mestre de obras

 
 
 
Recolocar uma estrela caída.
Um galo novo para São Pedro e pintar a crista.
Pôr uma pedra na funda de David.
Dourar e pôr penas novas na asa esquerda do Anjo da Guarda.
Brincos novos para a filha de Abraão.
Adornar a Arca de Noé.
Correção dos dez mandamentos.
Renovar o céu e lavar a lua.
Retocar o purgatório e acrescentar almas novas.
Avivar as chamas do inferno e vários arranjos nos condenados.
Limar as unhas do diabo.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de jorge melícias
officium lectionis edições
2022




20 maio 2024

luis alberto de cuenca / não vale a pena

 
 
 
Não vale a pena viver tanto e tão
heroicamente como ontem à noite.
Foi o vazio (com a mãe, a ansiedade)
quem desenhou as fronteiras que tivemos
de atravessar, as tórridas veredas
por onde fomos a nenhuma parte,
julgando que éramos os reis da festa.
Não vale a pena a dor que as luzes trazem
de manhã, se não é para nos salvar.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018




19 maio 2024

rui caeiro / um corpo diz para outro corpo

 
 
Um corpo diz para outro corpo
vem-me dar de comer e de beber
ou antes como e bebe do meu corpo
e eu fico a olhar um e outro
ora participante interessado
esquecido de tudo o que é o resto
ora o mais frio dos voyeurs
por vezes o olhar não separa
os corpos o próprio e o alheio
o meu é como se fosse de um outro
o do outro será talvez meu
os corpos seguem o seu caminho
isto é devoram-se até cada
um se cansar de foder e de olhar
 
 
 
rui caeiro
o quarto azul e outros poemasl
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




18 maio 2024

rui lage / terminal

 
 
Chegaram ao terminal número Sete
Malas de cabalistas (dói-me a mão!),
Repescam-se com a vida que remete
Um regresso partido no coração.
 
Cabelos intocados, gabardines,
Crinas de cigarros, saias de solidão
E hei-de jazer sem que me ensines
Porque tudo corre da tua emoção.
 
Imóveis, sustentam-se de vontades
Aviões sobre nuvens encarceradas
Atrás do olhar ambos os lados das grades.
 
Humilde por me saber uma vela
Entre portas, entre correntes de ar,
Só para ti me acendo à janela.
 
                                           Bruxelas
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002





 

17 maio 2024

miguel filipe mochila / cravo


 

 
Entre os mil cravos da minha infância, escolhi o branco
          e breve aquele
que em San Juan achei havendo-o perdido
a milhares de quilómetros de Porto Rico
em meio do asfalto
em outro santo ido
Bento este, pobre
Ou seja, do Mato, vulgo Azaruja.
Morto, foi da morte que o colhi. Como explicar
que por o não ter visto nunca
outra vez além o vi.
Andar a tempo não é o mesmo que andar atento.
A gente desperta um dia neste estranho, estranho
          mundo, e principia sempre em,
e chega sempre, ao estrangeiro:
cândidas, e logo apaixonadas, e enfim frustradas, se nos
          perdem as coisas, as ideias, as grandezas,
e sobram-nos só aquelas, frugais e fraternas, que
          perdemos na infância.
A isto chamamos beleza, mas a beleza
está só nas coisas belas, e elas fogem-nos sempre, para
          que possamos
continuar a dizê-las belas, a beleza.
Como aquela flor da infância:
como explicar
que num futuro
campo
é que a perdi.
 
 
 
miguel filipe mochila
nervo/21
colectivo de poesia
maio/agosto 2024
 



 

16 maio 2024

maria alberta menéres / dois poemas do mar

 
 
 
1.
No quebrar de cada onda,
vive uma canção falhada!
 
 
– Mas não importa cantar.
 
 
Basta uma onda incompleta
para dar sentido ao mar…
 
 
2.
O silêncio dorme, estendido na areia.
 
Velam três rochedos,
todos três calados,
todos três olhando
sem compreender!
 
 
– Ai se Deus me desse esta ignorância calma,
feita de me cumprir, sem o saber…
 
 
 
maria alberta menéres
intervalo 1952
poesia completa
porto editora
2020
 




15 maio 2024

till lindemann / beleza

 



 
 
Quando as rosas florescem no jardim
só as rosas se veem,
os suspiros das violetas perdem-se no ar
e misturam-se com o cheiro das rosas
 
 
 
till lindemann
nas noites tranquilas
trad. pedro garcia rosado
alma mater
2018



14 maio 2024

edgar lee masters / ollie mcgee

 



 
Vistes caminhar pelas ruas da povoação
um homem cabisbaixo e de rosto cadavérico?
É o meu marido. Esse que, com secreta crueldade,
que nunca revelei, me roubou a juventude e a beleza;
até que, por fim, enrugada, com os dentes amarelos,
quebrado o meu orgulho, humilhada e submissa,
desci a esta cova.
E sabeis o que devora o coração do meu marido?
O rosto que eu fui, face ao rosto que ele me deu!
É isso que o arrasta para o sítio onde estou.
Na morte, assim, alcancei a minha vingança.
 
 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003



13 maio 2024

charles bukowski / conselho amigável a imensos jovens adultos

 
 
 
Vai ao Tibete.
Anda de camelo.
Lê a bíblia.
Tinge os sapatos de azul.
Deixa crescer a barba.
Dá a volta ao mundo numa canoa de papel.
Assina o Saturday Evening Post.
Mastiga com o lado esquerdo da boca apenas.
Casa-te com uma mulher com uma perna e faz a barba
                                     com uma navalha de barbear.
E grava o teu nome no braço dela.
 
Escova os dentes com gasolina.
Dorme todo o dia e trepa às árvores à noite.
Sê um monge e bebe buckshot e cerveja.
Mete a cabeça debaixo de água e toca violino.
Faz dança do ventre diante de velas cor-de-rosa.
Mata o teu cão.
Concorre a Presidente da Câmara.
Vive num barril.
Parte a cabeça com um machado.
Planta túlipas à chuva.
 
Mas não escrevas poesia.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 



12 maio 2024

elizabeth bishop / cidade nocturna

 



                                

[Do avião]
 
Nenhum pé o conseguia suportar,
os sapatos são demasiado finos.
Vidro partido, garrafas partidas
montes deles a arder.
 
Por cima daquelas fogueiras
ninguém conseguia caminhas:
aqueles ácidos flamejantes
e diversos sangues.
 
A cidade queima lágrimas.
Um lago enrugado
de um verde azulado
começa a fumegar.
 
A cidade queima o crime.
– Para a libertação do crime
o calor central
tem de ser assim intenso.
 
Linfa diáfana,
túrgido sangue vivo,
salpicam o exterior
com coágulos de ouro
 
para onde correm, fundidos,
nos subúrbios escuros,
verdes e luminosos
rios de silicato.
 
Uma lagoa de betume
um grande magnate
chorava sozinho,
uma lua escurecida.
 
Um outro exaltava
um arranha-céus.
Olhem! Incandescente,
os seus fios gotejam.
 
O incêndio
luta por ar
num terrível vácuo.
O céu está morto.
 
(Porém, há criaturas,
cuidadosas, suspensas.
Poisam os pés, caminham
Verde, vermelho; verde, vermelho.)
 
 
 
elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006
 



11 maio 2024

emily dickinson / entre a forma de vida e a vida

 
 
 
Entre a forma de Vida e a Vida
É tão grande a diferença
Como o Álcool entre o Lábio
E o Álcool no Jarro
Este – excelente a manter –
Mas no desejo em êxtase
O sem rolha é melhor –
Eu sei porque provei
 
 
 
emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014




10 maio 2024

louise glück / neve de primavera

 
 
 
Olha o céu nocturno:
há em mim dois eus, dois tipos de poder.
 
Estou aqui contigo, à janela,
a ver como reages. Ontem
a lua ergueu-se sobre a terra húmida no jardim.
Agora, a terra cintila como a lua,
matéria morta incrustada de luz.
 
Já podes fechar os olhos.
Ouvi o teu pranto, e o pranto antes do teu,
e o que eles exigiam.
Mostrei-te o que desejas:
não crença, mas rendição
à autoridade, o que depende da violência.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020




09 maio 2024

wislawa szymborska / poema para

 
 
Houve uma vez. Criou o zero.
Num incerto país. À luz de estrela
já porventura extinta. Entre datas
nas quais alguém jurou. Sem um nome,
polémico que fosse. Não deixando
abaixo do seu zero uma ideia simples e dourada
sobre a vida, que é aquilo que é. A lenda ao menos
de ter um dia acrescentado um zero à rosa
que colheu e feito um ramalhete.
De que, estando a morrer, partiu para o deserto
num camelo de cem bossas. De ter adormecido
à sombra das palmas da vitória. De que acordará
quando estiver já tudo contado
até ao mais pequeno grão de areia. Que homem este!
Interstício entre facto e pensamento
Passou despercebido. Refractário
a todos os destinos. Repelindo
cada silhueta que lhe dou.
Sobre ele se adensou um silêncio sem cicatriz na voz.
Transfigurou-se a ausência em horizonte.
O zero escreve-se sozinho.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998