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17 fevereiro 2024

martín lópez-vega / para o tempo que virá

 
 
 
credite posteri
 
Horácio



 
Para o tempo que virá
burilamos a nossa pegada,
 
para o tempo que virá
e nos conhecerá através de um livro de imagens
no qual procurará as dos audazes,
as dos livres, a dos abnegados,
e nas fileiras de iguais acomodados
reparará apenas num estilo, num penteado,
um motivo de riso repetido
às custas de quem os seus afãs empenharam
em vãos méritos fugazes:
 
para o tempo que virá
a descobrir ruínas novas que revelarão
os nossos equívocos sobre o passado
e terá feito da nossa língua
uma geringonça deliciosa na qual falar
sobre coisas prodigiosas que nunca tivéramos sonhado,
 
para o tempo que virá e quererá saber
como nos amamos, o motivo do nosso sofrimento
e em que nos distinguimos do triste rebanho.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de jorge melícias
officium lectionis edições
2022




01 junho 2023

martín lópez-vega / junho

 
 
                             Vai donc, e si-t prec del chan
                             Que no-l peiurs.
 
                             Giraut de Borneth

 
 

Conduzíamos rumo a Piran
enquanto um melro
bicava uma cereja
e deixava dentro a sua canção.
 
Passeámos junto ao mar.
Invejámos os adolescentes que riam
seminus e se semidesnudavam
uns aos outros apenas com o olhar.
O tempo nunca faz o caminho de volta,
pensámos todos, mas ninguém o diz.
Nem faz falta, escapou-se-me em voz alta.
Comemos peixe defronte à Croácia.
Sonhámos ser amigos das velas.
A Casa de Giuseppe Tartini estava fechada
mas escutámos um violino tocado
quem sabe se pelo sue fantasma.
 
Já de volta
detivemo-nos no caminho
para comprar fruta recém-colhida.
A primeira cereja que comi
estava bicada por um pássaro,
e agora trago dentro a sua canção.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de jorge melícias
officium lectionis edições
2022




14 dezembro 2022

martín lópez-vega / roscoe

  
Os gansos cruzam o céu tocando a sua cómica trombeta,
os gatos gémeos brincam e ronronam,
as vacas tramam as suas filosofias
e o vento leva pensamentos estranhos.
 
– Noutro dia, e ainda estava a nevar,
ia a atravessar a rua
quando um murmúrio me chamou a atenção.
A árvore nevada estava cheia de pintarroxos
enroscados no camarim da primavera.
E dizem que quem vê o primeiro do ano
terá a sorte de feição. Pois eu vi-os a todos!
 
Ele conta como neste inverno
os cardeais vinham alimentar-se
no comedouro que pende do telhado
e o vento balançava-os
como crianças enregeladas sob a espessa neve.
 
«Sei que deveria. Mas não quero partir», repete.
Não sabe o exato dia
mas logo o seu lugar será outro.
 
Sabe quem cuidará do gado,
quem atenderá à colheita,
quem velará pelos gatos
e quem manterá a casa em pé.
Mas não é isso. Envergonha-o confessar
que são os gatos quem o guarda,
que é o gado que vela o seu sono,
que é a colheita o que põe ordem nos seus dias
e é a casa que cuida dele.
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de jorge melícias
officium lectionis edições
2022





17 outubro 2022

martín lópez-vega / política




Como tinha lido em René Char
(«Aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa.
Todos os pensamentos de amor serão os seus pensamentos»)
pus girassóis no jarrão, ao lado das laranjas,
em completa harmonia com o teu vestido. Cúpulas douradas
entregues à sua reza, politeísta e nós
dervixes giróvagos em redor da sua alegria.
 
Sobre a mesa os objectos contemplam-se.
Quando a mão os mover
calar-se-ão e falará a mão.
Escuta-os antes,
não terás outra oportunidade;
assim com tudo.
 
Numa conca de madeira com castanhas
uma romã e um marmelo são uma ética.
Como duas partes de algo anterior agora reunido
quando tento pintá-las
o vermelho foge para o amarelo e o verde para o laranja.
 
Na cozinha fumega ainda
o chá vermelho com mel de urze, sem procurar a chave
de uma emoção precisa (cf. Durrell, Lawrence, Collected Poems,
Dutton, New York, 1960, pp. 92-93), enquanto que da rua
chegam pela varanda aberta as vozes dos lojistas,
o chiar da corrente de uma bicicleta,
uma canção que não conhecemos e cujas notas
ouvidas ao acaso procuram o seu lugar bem dentro de nós
para voltar num outro dia a perturbar-nos, sem saber bem porquê.
 
– Que fazeis?
– Política.
 
Parámos a meio do caminho
Que vai do subiectum ao subiectus, detivemos o dispositivo
para contemplar cada detalhe do instante, os ínfimos
grãos de pó suspensos no ar da habitação,
cada minúscula fenda nas vigas de madeira do tecto,
o preguiçoso gato eslovaco, o tiquetaque do despertador,
os livros empilhados, a canção, as vozes, a bicicleta…
parámos o tempo e podemos mover-nos pela sua quietude.
 
– Isto é o que a poesia ensina ao mundo.
– Parecer-te-á pouco.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de Jorge melícias
officium lectionis edições
2022






 

27 novembro 2013

martín lópez-vega / laranja




Alguém a deixou sobre a mesa do jardim, a laranja.
Agora é um símbolo da tarde, essa fruta
brilhando por entre o confuso calor deste fim de dia
luminoso como uma recordação amorosa da adolescência,
como a primeira laranja,
como as mãos que cheiram a laranja.

(Rodearam-na logo as formigas, esvoaçaram
em seu torno mil insectos, bailará a noite
em seu redor.) Mas agora essa laranja na tarde
supõe uma ordem, um sentido, o centro gravitacional do dia.



martín lópez-vega
árbol desconocido
tradução de ruy ventura.
visor
2002