23 maio 2024

gabriele d’ annunzio / meio-dia

 



 

 
No seu auge o dia.
Sobre o mar etrusco
paira um verde pálido
como o dessepulto
bronze das estátuas.
Tudo tão tranquilo
que à roda não vibra
nem da brisa o hálito;
sequer um arbusto
se move na áspera,
solitária praia.
 
Bonança, calor,
em tudo silêncio.
O Verão, maduro,
cobre-me a cabeça,
como sendo um fruto
que a mim me pertença,
e colher eu deva
com a minha mão,
e sugar eu deva
com a minha boca.
Nem um só vestígio
de humana presença.
Nada que se ouça,
se me ponho à escuta.
Longe a dor dos homens.
Nem já tenho nome.
Sinto que o meu rosto
se doura de um ouro
que é meridiano;
e que a minha loura
barba já reluz
como a própria areia.
Mesmo o delicado
desenho da onda
na orla da praia
me está no palato,
na palma da mão
regendo-me o tacto.
Toda a minha força
na areia se expande,
no mar se difunde:
minha veia, o rio;
minha fonte, o monte;
o bosque, o meu púbis;
meu suor, a nuvem.
E vivo na flor
de esteva das dunas,
nas pinhas, nos bagos
dos juncos; nas algas,
na flora marinha;
nas coisas exíguas,
nas coisas imensas;
na areia contínua,
de cumes longínquos.
Só ardo e rebrilho.
E nem tenho nome.
Montanhas e ilhas,
bosques e baías
perderam os nomes
que outrora lhes dei
ou tinham outrora
em lábios humanos.
E eu próprio sem nome
nem destino humano:
já só Meio-Dia
agora me chamo.
Vivo em tudo, tácito,
tal e qual a Morte.
 
Toda a minha vida
se tornou divina.
 
«Meriggio», vv. 1-10, 55-109
Alcyone (1904)
 
 
 
gabriele d’ annunzio
vozes da poesia europeia – III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 165
setembro - dezembro 2003
fundação calouste gulbenkian





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