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12 maio 2024

elizabeth bishop / cidade nocturna

 



                                

[Do avião]
 
Nenhum pé o conseguia suportar,
os sapatos são demasiado finos.
Vidro partido, garrafas partidas
montes deles a arder.
 
Por cima daquelas fogueiras
ninguém conseguia caminhas:
aqueles ácidos flamejantes
e diversos sangues.
 
A cidade queima lágrimas.
Um lago enrugado
de um verde azulado
começa a fumegar.
 
A cidade queima o crime.
– Para a libertação do crime
o calor central
tem de ser assim intenso.
 
Linfa diáfana,
túrgido sangue vivo,
salpicam o exterior
com coágulos de ouro
 
para onde correm, fundidos,
nos subúrbios escuros,
verdes e luminosos
rios de silicato.
 
Uma lagoa de betume
um grande magnate
chorava sozinho,
uma lua escurecida.
 
Um outro exaltava
um arranha-céus.
Olhem! Incandescente,
os seus fios gotejam.
 
O incêndio
luta por ar
num terrível vácuo.
O céu está morto.
 
(Porém, há criaturas,
cuidadosas, suspensas.
Poisam os pés, caminham
Verde, vermelho; verde, vermelho.)
 
 
 
elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006
 



24 março 2016

elizabeth bishop / o fim de março


                                Para John Malcolm Brinnin e Bill Read: Duxbury


Estava frio e vento, certamente não um dia
para passear naquela longa praia.
Tudo estava afastado, tão longe quanto possível,
encolhido: a maré distante, o oceano retraído,
as aves marinhas isoladas ou aos pares.
O vento vindo da terra turbulento, gelado
entorpecia-nos os rostos de um dos lados:
desfazia a formação
de um voo isolado de gansos do Canadá;
e soprava para trás as imperceptíveis ondas largas,
numa névoa acerada e vertical.

O céu estava mais escuro do que a água
 – era cor de jade parecida com sebo de carneiro.
Ao longo da areia húmida, com botas de borracha, seguíamos
um trilho de grandes pegadas de cão (tão grandes
que mais pareciam pegadas de um leão). A seguir deparámos
com um fio branco e molhado que se estendia sem fim,
às voltas até à linha de água, pela água dentro
vezes sem conta. Finalmente, elas terminavam:
um emaranhado espesso e branco, do tamanho de um homem,
          à tona da água,
erguendo-se a cada onda, um fantasma encharcado,
recuando, encharcado, entregando a alma ao Criador…
Um fio de papagaio? – Mas sem papagaio.

Queria ir tão longe como a minha proto-casa-de-sonho,
A minha cripto-casa-de-sonho, aquela caixa torta
Implantada sobre estacas, de ripas verdes,
Uma espécie de casa-alcachofra, mas mais verde
(cozida com bicarbornato de sódio?),
Protegida das marés de primavera por uma paliçada
de – são travessas de caminho-de-ferro?
(Muitas coisas sobre este lugar são duvidosas.)
Gostaria d eme reformar ali e nada fazer,
ou não muito, para sempre, em dois quartos vazios:
espreitar pelos binóculos, ler livros aborrecidos,
velhos, longos, longos livros, e escrever notas inúteis,
falar para mim própria, e, nos dias de nevoeiro,
observar as gotículas caindo, carregadas de luz.
À noite, um grog à l´américaine.
Queimá-lo-ia com um fósforo de cozinha
e a encantadora e diáfana chama azul
vacilaria, em duplicado na janela.
Tem de haver um fogão; uma chaminé,
de lado, mas atada com fios,
e electricidade, possivelmente
 – pelo menos, nas traseiras um outro fio
liga frouxamente tudo aquilo
a qualquer coisa lá ao longe por detrás das dunas.
Uma luz para ler – perfeito! Mas – impossível.
E naquele dia o vento estava demasiado frio,
mesmo para ir até tão longe,
e claro a casa estava tapada com as tábuas.

No caminho de regresso os nossos rostos gelaram do outro lado.
O sol surgiu apenas por um minuto.
Apenas por um minuto, plantadas nos seus entalhes de aeia,
as pedras pesadas, húmidas e espalhadas
ficaram multicoloridas,
e todas as que estavam bastante altas lançavam longas sombras,
sombras individuais, depois recolhidas outra vez.
Podiam estar a troçar do leão,
só que agora ele estava por detrás delas
– um sol que caminhara na praia com a última maré baixa,
fazendo aquelas pegadas grandes e majestosas,
ele que talvez tivesse atirado um papagaio para fora do céus
          para brincar.




elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006



10 outubro 2015

elizabeth bishop / uma arte



A arte de perder não é difícil de se dominar;
tantas coisas parecem cheias de intenção
de se perderem que a sua perda não é uma calamidade.

Perder qualquer coisa todos os dias. Aceitar a agitação
de chaves perdidas, a hora mal passada.
A arte de perder não é difícil de se dominar.

Então procura perder mais, perder mais depressa:
lugares e nomes e para onde se tencionava
viajar. Nenhuma destas coisas trará uma calamidade.

Perdi o relógio da minha mãe. E olha! a última, ou
a penúltima, de três casas amadas desapareceu.
A arte de perder não é difícil de se dominar.

Perdi duas cidades encantadoras. E, mais vastos ainda,
reinos que possuía, dois rios, um continente.
Sinto a falta deles, mas não foi uma calamidade.

 – Mesmo o perder-te (a voz trocista, um gesto
que amo) não foi diferente disso. É evidente
que a arte de perder não é muito difícil de se dominar
mesmo que nos pareça (Toma nota!) uma calamidade.



elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006