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17 maio 2024

miguel filipe mochila / cravo


 

 
Entre os mil cravos da minha infância, escolhi o branco
          e breve aquele
que em San Juan achei havendo-o perdido
a milhares de quilómetros de Porto Rico
em meio do asfalto
em outro santo ido
Bento este, pobre
Ou seja, do Mato, vulgo Azaruja.
Morto, foi da morte que o colhi. Como explicar
que por o não ter visto nunca
outra vez além o vi.
Andar a tempo não é o mesmo que andar atento.
A gente desperta um dia neste estranho, estranho
          mundo, e principia sempre em,
e chega sempre, ao estrangeiro:
cândidas, e logo apaixonadas, e enfim frustradas, se nos
          perdem as coisas, as ideias, as grandezas,
e sobram-nos só aquelas, frugais e fraternas, que
          perdemos na infância.
A isto chamamos beleza, mas a beleza
está só nas coisas belas, e elas fogem-nos sempre, para
          que possamos
continuar a dizê-las belas, a beleza.
Como aquela flor da infância:
como explicar
que num futuro
campo
é que a perdi.
 
 
 
miguel filipe mochila
nervo/21
colectivo de poesia
maio/agosto 2024
 



 

15 maio 2019

miguel filipe mochila / a vida faz-me falta para andar contente



E então é assim: a tarde passa
a língua só tangeu um par de coisas
é tão daninha a língua quando atrasa
de a deixar tão fruste assim à solta
sem ter onde aterrar
e vai planante
alta demais para largar raízes
baixa demais para ser sonora
e a aflita música nunca acorda
e então cala-se e ainda alada
podia bater as asas a vida toda
porque é ainda língua mais volátil
se volante enfim se arrasta
à pressa na prosa dos jornais…
e eu fico à escuta, aqui, parado
é triste ser-se alegre para a escrita
os dias porcos também cantam qualquer coisa
e eu queria mais era ter arte
para ouvir a valsa que desata
a dançar com o vento nos currais…
mas nunca acontece nada e então absurda
a fome já fermenta a carne fraca
ponho a mesa para o poema faz-me falta
levar um coração inteiro à boca
e então já oiço e quase existo
perto fala um vento atrás da porta
e se pergunto com que língua me vai entrar em casa
se será toda odorífera e sonora
como na velha casa a voz já morta
quando era viva a voz e a casa viva
se passará por mim rasante como a mosca
que se põe a pensar no voo e cai na sopa
se terá maneiras e timbre da rapariga
que sempre se tolhe quando pede
mais…
mas logo o sentido clama e a língua perde-se
a dizer isto e depois isto
(branco e azul não são a mesma coisa,
não é sangue o que no céu se arrasta
quando o sol se põe, etc., etc.)
e lá fora o que oiço é sempre só o que oiço
este tinir da chuva contra o copo
no parapeito a repetir já rouco
a algazarra da festa de ontem
o concerto alegre de ontem
que sendo de ontem
já não toca…
e é então que eu penso:
coisas reais nunca vêm à minha mesa
é triste este ser-se alegre e os dias cantam
e eu não ter arte, e ser já tarde
e a festa ter sido ontem e assobiante
ouvir-se o vento sobre os porcos
que belos bailam nos currais…




miguel filipe mochila 
nervo/5
colectivo de poesia
maio/agosto 2019