E então é assim: a tarde passa
a língua só tangeu um par de coisas
é tão daninha a língua quando atrasa
de a deixar tão fruste assim à solta
sem ter onde aterrar
e vai planante
alta demais para largar raízes
baixa demais para ser sonora
e a aflita música nunca acorda
e então cala-se e ainda alada
podia bater as asas a vida toda
porque é ainda língua mais volátil
se volante enfim se arrasta
à pressa na prosa dos jornais…
e eu fico à escuta, aqui, parado
é triste ser-se alegre para a escrita
os dias porcos também cantam qualquer coisa
e eu queria mais era ter arte
para ouvir a valsa que desata
a dançar com o vento nos currais…
mas nunca acontece nada e então absurda
a fome já fermenta a carne fraca
ponho a mesa para o poema faz-me falta
levar um coração inteiro à boca
e então já oiço e quase existo
perto fala um vento atrás da porta
e se pergunto com que língua me vai entrar em casa
se será toda odorífera e sonora
como na velha casa a voz já morta
quando era viva a voz e a casa viva
se passará por mim rasante como a mosca
que se põe a pensar no voo e cai na sopa
se terá maneiras e timbre da rapariga
que sempre se tolhe quando pede
mais…
mas logo o sentido clama e a língua perde-se
a dizer isto e depois isto
(branco e azul não são a mesma coisa,
não é sangue o que no céu se arrasta
quando o sol se põe, etc., etc.)
e lá fora o que oiço é sempre só o que oiço
este tinir da chuva contra o copo
no parapeito a repetir já rouco
a algazarra da festa de ontem
o concerto alegre de ontem
que sendo de ontem
já não toca…
e é então que eu penso:
coisas reais nunca vêm à minha mesa
é triste este ser-se alegre e os dias cantam
e eu não ter arte, e ser já tarde
e a festa ter sido ontem e assobiante
ouvir-se o vento sobre os porcos
que belos bailam nos currais…
miguel filipe mochila
nervo/5
colectivo de poesia
maio/agosto 2019