I
Sou vil, sou reles, como toda
a gente
Não tenho ideais, mas não os
tem ninguém.
Quem diz que os tem é como
eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque
não os tem.
É com a imaginação que eu amo
o bem.
Meu baixo ser porém não mo
consente.
Passo, fantasma do meu ser
presente,
Ébrio, por intervalos, de um
Além.
Como todos não creio no que
creio.
Talvez possa morrer por esse
ideal.
Mas, enquanto não morro, falo
c leio.
Justificar-me? Sou quem todos são...
Modificar-me? Para meu igual?...
- Acaba lá com isso, ó
coração!
II
Deuses, forças, almas de
ciência ou fé,
Eh! Tanta explicação que nada
explica!
Estou sentado no cais, numa
barrica,
E não compreendo mais do que
de pé.
Por que o havia de
compreender?
Pois sim, mas também por que
o não havia?
Águia do rio, correndo suja e
fria,
Eu passo como tu, sem mais
valer...
Ó universo, novelo
emaranhado,
Que paciência de dedos de
quem pensa
Em outras cousa te põe
separado?
Deixa de ser novelo o que nos
fica...
A que brincar? Ao amor?, à indif'rença?
Por mim, só me levanto da
barrica.
III
Corre, raio de rio, e leva ao
mar
A minha indiferença
subjectiva!
Qual "leva ao
mar"! Tua presença esquiva
Que tem comigo e com o meu
pensar?
Lesma de sorte! Vivo a cavalgar
A sombra de um jumento. A vida viva
Vive a dar nomes ao que não se activa,
Morre a pôr etiquetas ao
grande ar...
Escancarado Furness, mais
três dias
Te, aturarei, pobre
engenheiro preso
A sucessibilíssimas
vistorias...
Depois, ir-me-ei embora, eu e
o desprezo
(E tu irás do mesmo modo que
ias),
Qualquer, na gare, de cigarro
aceso...
IV
Conclusão a sucata! ... Fiz o
cálculo,
Saiu-me certo, fui
elogiado...
Meu coração é um enorme
estrado
Onde se expõe um pequeno
animálculo
A microscópio de
desilusões
Findei, prolixo nas minúcias
fúteis...
Minhas conclusões Dráticas,
inúteis...
Minhas conclusões teóricas,
confusões...
Que teorias há para quem
sente
o cérebro quebrar-se, como um
dente
Dum pente de mendigo que
emigrou?
Fecho o caderno dos
apontamentos
E faço riscos moles e
cinzentos
Nas costas do envelope do que
sou ...
V
Há quanto tempo, Portugal, há
quanto
Vivemos separados! Ah, mas a alma,
Esta alma incerta, nunca
forte ou calma,
Não se distrai de ti, nem bem
nem tanto.
Sonho, histérico oculto, um
vão recanto...
O rio Furness, que é o que
aqui banha,
Só ironicamente me
acompanha,
Que estou parado e ele correndo
tanto ...
Tanto? Sim, tanto relativamente...
Arre, acabemos com as
distinções,
As subtilezas, o interstício,
o entre,
A metafísica das sensações
-
Acabemos com isto e tudo mais
...
Ah, que ânsia humana de ser
rio ou cais!
álvaro de campos