Chicotes de fogo, de escavação, de fel
chicote sobre os bens e os males
sobre as ordens e os olhos
sobre as mãos que seguram o cabo
Brasa sobre a camisa do Rei
brasa sobre a boca do padre
Estalo vibrando sobre os mil espelhos
estalo vibrando nos charcos de laca
Matraca na Musa
matraca no coração dos anjos
grasnidos sobre as assembleias
Verrugas para cima das doutrinas
tripas para cima das doutrinas
escarros para cima das doutrinas
Rolha sobre a voz anónima
sobre o inchar da voz anónima
sobre os moinhos que fabricam estrelas
Chagas no aço
chagas nas estruturas
chagas nos planos de futuro
Rasurar
os irmãos e os pais
e os novos pais disfarçados de filhos
a espécie de paz
que faz as almas esquartejadas
as ruas que espiam
as categorias que aplaudem
as vozes de veludo
os enxuga-misérias
a prepararem já uma miséria ainda mais nojenta
as vozes de comando da momentânea ciência
os liquidadores de Edipo
os discípulos, os discípulos de discípulos
escravos-natos sôfregos da posse de outros escravos
Rasura das feições do rosto
do cunho do objecto
do vestígio do facto
dos inumeráveis inimigos nunca assaz vomitados
tábua rasa não uma vez mas mil vezes a repetir
da origem
dos desenvolvimentos
do que prolifera
a aplacação da ira, peixe piloto da próxima renegação
de si mesmo
de ti
do eixo
rasura
rasura
rasura
Catedrais do transe
da raiva
do esterco
do abcesso
da injúria
da chaga lá de dentro
do ofídio traidor que folga quando a flecha parte
do submarino que vai ao fundo asfixiado
do rato arsenificado
do pénis queimado
do anzol na aorta
espinhosas
verruguentas
apofisadas
amorfas
polimorfas
doidas
arrebatadas
inflamadas
Catedrais não benzidas não curtidas em banha
do absurdo
da exasperação
do sofrimento
da fome que há na fera
da sede no traído
da superação impossível
do ranger de dentes
do grito
do grito
do grito
catedrais, quando vos veremos nós?
Por fim edificadas
por fim à imagem da nossa desmesurada medida
dominando vertiginosamente metrópoles e aldeias
unidos, nós e elas, apesar da sua massa e dureza
como irmãos gémeos colados pela boca
pela raiva, pelos rins, pelo ânus
pela abjecção comum impossível de esquecer
por tudo o que é falhado implacavelmente desde o
princípio
pela desgraça de posição
por toda a velha cola reumatismal
pela nova instalação que fere mais
ainda mais deformadora
pela todavia inextinguível tendência para sublimar
catedrais
monstruosamente escoradas ao rosto do céu
nossas catedrais
quando vos veremos nós?
henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999