22 dezembro 2024

e e cummings / se eu te amo

 
 
 
LIV
 
se eu Te amo
(espessura significa
mundos habitados por errantes
austeras brilhantes fadas
 
se tu me
amas) distância é mente cuidadosamente
luminosa com inúmeros gnomos
De completo sonho
 
se nós (timidamente)
nos amamos, o que nuvens fazem ou Silentemente
Flores assemelha-se à beleza
menos que a nossa respiração
 
 
 
e. e. cummings
trad. ana hatherly
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990




21 dezembro 2024

samuel beckett / bem bem existe um país

 
 
 
bem bem existe um país
em que o esquecimento em que pesa o esquecimento
lentamente nos mundos inominados
aí a cabeça aquietamo-la a cabeça está calada
e sabemos não nada sabemos
o canto das bocas mortas morre
no areal fez a viagem
não há nada para chorar
 
a minha solidão conheço-a vamos lá conheço-a mal
tenho tempo vou achando que tenho tempo de vida
mas que tempo osso faminto a vida do cão
do céu que assola incessante o meu vão de céu
do raio que trepa ocelado fremente
dos mícrons dos anos trevas
 
querem que vá de A para B não posso
não posso sair estou numa terra sem rastos
sim sim é uma coisa bonita que aí tem uma coisa bem bonita
o que é não me façam mais perguntas
espiral poeira de instantes o que é isso o mesmo
a calma o amor o ódio a calma a calma
 
 
 
samuel beckett
rosa do mundo, 2001 poemas para o futuro
trad. filipe jarro
assírio & alvim
2001





20 dezembro 2024

fayis suyyagh / o cavaleiro

 
 
 
permanecendo firme sob o calor do sol
e o açoite da chuva
passando por ele dia e noite
passado e futuro
as quatro estações
esperou o grande momento
com as feridas enroupadas de esquecimento
(quando visse o dragão cujos olhos cospem fogo)
quando ele veio
correu
     bateu em retirada
     dobrou-se para trás
     inclinou-se
     caiu
     como uma tempestade
cravando a sua lança na face do Nada
 
 
 
fayis suyyagh
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução adalbaerto alves
assírio & alvim
2001




 

19 dezembro 2024

yorgos seferis / dentro das cavernas marinhas

 
 
Dentro das cavernas marinhas
há uma sede há um amor
há um êxtase,
tão duro como as conchas
podes segurá-las na palma da tua mão.
 
Dentro das cavernas marinhas
dias inteiros olhava-te nos olhos
e não te conhecia nem tu me conhecias.
 
 
 
yorgos seferis
esboço para um verão
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
 




18 dezembro 2024

wislawa szymborska / o amanhecer

 
 
 
Ainda durmo
e entretanto sucedem-se factos.
Clareia a janela,
acinzentam-se as trevas,
surge o quarto do espaço sombrio
e nele tentam firmar-se rastos de luz pálidos e vacilantes.
 
A seguir, sem pressas,
pois é uma cerimónia,
amanhecem as superfícies do tecto e das paredes,
separam-se as formas
umas das outras,
a esquerda da direita.
 
Alvorecem as distâncias entre os objectos,
chilreiam os primeiros clarões
no copo e na maçaneta.
Já não só parece, agora é no seu todo,
aquilo que ontem movido,
o que caiu no chão
e o que se enquadra nas molduras.
Só os pormenores
ainda não deram entrada no campo d avisão.
 
Mas atenção, atenção, atenção,
muito parece indicar que regressam as cores
e mesmo a mais ínfima coisa vai recuperá-las
juntamente com os tons da sombra.
 
Muito raramente isto me espanta, mas deveria.
Habitualmente, acordo na condição da testemunha atrasada,
com o milagre já consumado,
o dia estabelecido
e o amanhecer com mestria em manhã transformado.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 



17 dezembro 2024

rainer maria rilke / os sonetos a orfeu

 



 
I
 
Invisível poema, respirar!
Mundo, espaço e ser vislumbro
Sem cessar em troca pura. O equilibrar
Em que por ritmos me cumpro.
 
Única onda
de que sou mar gradual;
o mais poupado na ronda,
ganho de espaço afinal.
 
Quanto lugar dos espaços
dentro de mim se precisa.
Ventos, filhos nos meus braços.
 
Reconheces-me, ó aragem, tão cheia das minhas lavras?
Tu que foste casca lisa,
Curva e folha das palavras.
 
 
 
rainer maria rilke
elegias de duíno e os sonetos a orfeu
trad. de vasco graça moura
quetzal
2017



16 dezembro 2024

paul celan / conversas com cascas de árvore

 
 
 
CONVERSAS COM CASCAS DE ÁRVORE. TU,
tira a casca, anda,
tira-me, feito casca, da minha palavra.
 
É tarde já, mas nós
queremos estar nus e à beira
da navalha.
 
 
 
paul celan
a morte é uma flor
trad. de joão barrento
relógio d´água
2022
 



15 dezembro 2024

ángél gonzález / discurso aos jovens

 
 
 
De vós,
os jovens,
espero menos coisas grandes que as que realizaram
os vossos antepassados.
Entrego-vos
uma herança grandiosa:
guardem-na.
Amparem esse rio
de sangue,
sujeitem com firme
mão
o troco dos cavalos
velhíssimos,
mas ainda poderosos,
que arrastam com pujança
o fardo dos séculos
passados.
 
Nós somos estes
que aqui estamos reunidos,
e os outros não importam.
 
Tu, Pedra,
filho de Pedro, neto
de Pedra
e bisneto de Pedro,
esforça-te
por seres sempre pedra enquanto vivas,
por seres Pedro Petrificado Pedra Branca,
por não tolerares o movimento,
por asfixiares em moldes apertados
tudo o que respira ou quanto pulse.
 
A ti,
leal amigo,
companheiro de armas,
escudeiro,
sustento da nossa glória,
jovem alferes dos meus esquadrões
de arcanjos vestidos de azeitona,
sei que não preciso de admoestar-te:
com seguires sendo fogo e ferro,
basta.
Fogo para queimares o que floresce.
Ferro para esmagares o que se ergue.
 
E, finalmente,
tu, dono
do ouro da terra,
poderoso impulsionador da nossa vida,
não nos faltes nunca.
Sê generoso
com aqueles de que precisas,
mas guarda,
expulsa do teu reino,
mantêm-nos para lá das tuas fronteiras,
deixa que morram,
se é preciso,
os que sonham,
os que procuram
só a luz e a verdade,
os que deveriam ser humildes
e às vezes não o são, é assim a vida.
 
Se algum de vós
pensasse,
eu dir-lhe-ia: não penses.
 
Mas não é preciso.
 
Continuem assim,
meus filhos,
e eu prometo que tereis
paz, e pátria feliz,
e ordem,
e silêncio.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 



14 dezembro 2024

manuel antónio pina / passagem

 
 
 
                                                                À Inês



 
Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo,
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?
 
Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reias,
tão perto que as palavras são de mais?
 
Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e como diremos rios?
 
 
 
manuel antónio pina
amigos e outras moradas
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012
 




13 dezembro 2024

miguel serras pereira / levíssima demora

 



 

 

Deixo aqui a estrela semeada para te dar
nas areias de uma noite de passagem
numa carta de amor de novo em branco
a meio das outras cartas que no escuro
despertam no meu pulso enquanto escuto
ou a manhã adormece intermitente
na extrema vigília das mãos nuas
 
Apoio as costas contra o velho muro
por onde agora chegas e atravessas
as passagens secretas sob a pele
o imenso olhar dos campos desdobrados
brilhantes de brancura à transparência
do sangue da loucura
 
Deito ao vento o que resta do meu rosto
para quando o vento vier amar a sós
no voo dos teus ombros ainda aureolados
pela levíssima demora destas horas
subindo ao teu encontro a antiga atmosfera
onde pássaro a pássaro hoje se desprende
do silêncio do tempo a música das esferas
 
O adeus começa a passo de lobo na cintura
perdido no caminho do regresso
Alta queda de tudo para tudo
quando tudo de novo flutua
à deriva dos astros entre as ilhas penduradas
por cada passo teu nos mastros deste barco
que acorda a travessia no deserto
e traz a bordo o mar para nos levar
 
 
 
miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993
 


12 dezembro 2024

nuno guimarães / os amorados (1)

 
 
 
I
Na amurada dos navios, na improcedência
das aves sem lugar, desalojados,
vão.
 
II
E se descobrem um sinal ou um resíduo
da terra original, é só a móvel,
a geográfica Terra do sistema.
 
III
Tomados já de amor, in amorados,
buscam só a morada, sem prefixo.
 
IV
E, no entanto, há mapas, há sistemas
de orientação indica dores:
é ali, em tal lugar, em tal
memória.
 
V
Um mito embalsamaram
no coração sem metafísica.
Entre sinais de voo e de metáfora
entre um cantar e a sua escrita.
 
 
 
(1) Amorado: voc. arc., fora da morada, exilado
 
 
 
nuno guimarães
dispersos
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024




 

11 dezembro 2024

miguel oliva teles / nesta manhã

 
 
 
nesta manhã
o sol tímido e inclinado não chega
para desenvencilhar as mãos apertadas pelo frio
fiz apenas desenhos na estrada
recortando o perfil das árvores
e dando sombras às grades do jardim.
 
nesta manhã
chegam-me várias saudades
amores como esse sol
de uma fervura imensa
mas distante radiância.
 
e as mãos, guardo-as no peito
porque é nessas figuras cortadas
nas silhuetas de luz e escuro
e nas texturas que guarda o rocio
que vos conjuro
 
nas mãos ao peito
(quais luvas!)
há saudade
e há calor aprisionado.
 
 
 
miguel oliva teles
errando
editora urutau
2021




10 dezembro 2024

eugénio de andrade / um rio te espera

 



 

 

Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, oh abandonado!
 
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.
 
Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada
em construir pequenos ataúdes
para o desejo mais puro e mais sagrado,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.
 
Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te da tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.
 
Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água;
a água!,
água ou bosque,
sombra pura
nos grandes dias de verão.
 
Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.
 
 
 
eugénio de andrade
até amanhã (1951-1956)
poemas
edit. inova
1971