05 dezembro 2023

roland barthes / incidentes

 




 

 
 
 
Na praça do pequeno Socco, de camisa azul ao vento, figura de Desordem, um rapaz encolerizado (o que significa, neste caso, com todos os traços da loucura) gesticula e invectiva um Europeu (Go home!). Desaparece. Segundos mais tarde, um canto anuncia que se aproxima um enterro; o cortejo aparece. Entre os carregadores (que se revezam) do caixão, o mesmo rapaz, provisoriamente sereno.
 
 
 
roland barthes
incidentes
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987
 




04 dezembro 2023

vergílio ferreira / a morte dos amigos

 
 
284 – A morte dos amigos e conhecidos traz uma pergunta enigmática que nos desconstrói a imortalidade. Escrevo-a na lousa escolar em letras tortas de hesitação – para quê? Apago as letras com a esponja, fica o escuro da pedra. Para quê? É a pergunta da infância e da velhice. Apago a pergunta na memória e fica a lisura de simplesmente existir. E a imortalidade volta como a ternura triste de um cão.
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001





03 dezembro 2023

bernardo soares / reconheço hoje que falhei,

 
 
L. do D.
 
Reconheço hoje que falhei, só pasmo, às vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa [?] dos loucos...
 
Era lúcido e triste como um dia frio.
 
Tenho elementos espirituais de boémio, desses que deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do espírito boémio — o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas. Nunca fui mais que um boémio isolado, o que é um absurdo; ou um boémio místico, o que é uma coisa impossível.
 
Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direcções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais, mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixaram de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá — esbatido na minha sonolência de viver.
 
Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles como um Narciso cego que gozou a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e nocturna, segredada às emoções abstractas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.
 
Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982




02 dezembro 2023

ievgueni ievtuchenko / monólogo duma actriz

 




 
Diz a actriz: Parece que a velha Tróia foi destruída!
Já não há papéis,
não há papéis daqueles que viravam a minha alma
                               do avesso,
que me esgotavam de vez as lágrimas.
Estou farta desta vida, vou fugir para o campo.
 
Não há papéis que prestem.
Afogamo-nos no sempapelismo.
Maldita seja a união dos escritores,
                                         não os Escritores.
Os clássicos estão encharcados como um piquete
                                               de bombeiros.
Pois não sabiam eles de Hiroxima,
da guerra de Espanha, do ano de 1937
na Rússia, de todas as nossas dores?
Não me digam que isto era impossível de contar…
 
Já não há papéis que prestem.
E sem bons papéis ficamos sem bússola:
tu sabes como o Universo é pavoroso.
Quando qualquer coisa desliza pelo céu
não haverá saída para essa coisa?
 
Faz favor, dá-me um bilhete para a estreia.
Faz favor, dá-me o meu bem-estar.
E papéis para a esquerda,
papéis para a direita…
Eu bebo,
bebo sem vontade, é certo,
mas que querem que faça
quando não há gente, não há papéis que prestem?
 
Bebe onde estiveres, trabalhador,
e com que copo – não sei.
Não há papéis que prestem.
 
Chora, harmónio, em qualquer margem
                                                         do grande Volga.
Não há papéis que prestem.
E em Fátima camponeses beijam Nossa Senhora,
                                                Madona de pedra e dor.
Não há papéis que prestem.
 
Era um moço de dezasseis anos
e bateram nele como se fosse um bombo.
Não há papéis que prestem.
 
Ninguém fala das mortes atrozes,
                                       mas alguém grita para o juiz.
                                       Onde? No futebol!
 
Não há papéis que prestem.
E sem bons papéis a vida é podridão, mais nada.
 
Todos nós somos génios no ventre materno,
mas muitos génios possíveis morreram
à falta de bons papéis.
Eu não exijo o sangue de ninguém –
exijo um papel que preste!
 
 
 
ievgueni ievtuchenko
ievtuchenko em lisboa (1967)
dom quixote
1968



01 dezembro 2023

joão miguel fernandes jorge / primeiro de dezembro

 




 
O Primeiro de Dezembro é um café pobre. O dono
se reconhece a sua casa neste verso
não vai gostar. Que posso fazer? Recordo a sala ampla;
deu lugar a várias divisões – salas de restaurante e
café – o espaço de soalho carcomido; estremecia ao
passo dos clientes. Cheiro a café de saco bem quente
servido em copo. E o vinho que bebiam ao balcão, Gaeiras
de reduzida colheita de lavrador, quando a luz incidia,
brilhava como telha vermelha magoada de luar.
 
A vila – se alguma coisa de qualidade em
Portugal deixasse um dia de ser pobre – tem hoje arre-
medos de casinha de chocolate.
Fico-me pela esplanada no desvão do largo irregular e
perfeito. Em frente, o portal da ermida de São Martinho;
dois túmulos prendem-se à estreita frontaria. À direita, a
parede lateral da igreja de São Pedro; ao lado esquerdo,
armas plenas do reino, coroadas, dão corpo ao edifício da
câmara. Buganvílias crescem na diferença do vermelho e do roxo.
 
Cimeira à ermida, uma velha casa aluga quartos. Um dia
hei-de fazer de turista e alugar a divisão fronteira à mesa
em que, por hábito, me sento. Não é golpe narcisista
para ver o lugar da minha ausência. Vou querer abrir e
fechar a empenada janela de guilhotina e voltar a abri-la
para assim permanecer toda a noite.
Hei-de sentar-me na cama, despir-me com o vagar dos gestos
de quem nunca teve um ombro onde pousar a cabeça; de
súbito, quando já for madrugada, hei-de ouvir
 
vozes alegres, risos, chamamentos, respostas
joviais, hei-de chegar à janela, hei-de ver
os mortos de Óbidos
abandonados nas posições mais cruéis.
Feira de cadáveres e de porção de ossos; e uma festa ao mesmo
                                                                                 tempo
com um tilintar de campainhas a carruagem de não sei que
capitão de praça vai passar pelo meio dos despojos
levada por um cavalo branco. E na boleia, os gémeos
que conheci na casa logo abaixo da Misericórdia. O mais bonito
segurava as rédeas e o chicote. O que não era tão bonito –
  leitura difícil, rosto e corpo genuinamente iguais – tocava
                                                                  o serpentão.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004



30 novembro 2023

joaquim manuel magalhães / columbário

  
 
Cada ano que passa traz-me lenha.
São já muitos quando a camioneta chega
com as três ou quatro toneladas de mistura.
Assim chama às várias espécies derribadas
que chegam para cada Inverno que lhe pago.
Agora já digo ao Sr. Antunes: mais um ano.
E ele ignora-me. Que se gasta a lenha
mas é um conforto. Que é um pecado lamentar.
Com o seu santo na medalha pendurado
nem lhe digo que também por cada ano,
mais que a lenha, ardemos e ardemos.
 
Jardins abertos. Em várias ruas
ao longo do anoitecer
distinguia-se quem lançava rápidos sinais
e para um outro lado nos dispunha.
Ainda nem eram precisos bares.
Um autocarro, o metro, qualquer mesa
de um café
ensinava-nos o caminho de elevadores,
as janelas de onde se via,
depois,
a cidade adormecida.
 
Um holofote amarelo contra o quarto que me alberga,
toda a noite uma sobreluz de hotel que demolia
as tentativas de sono detrás do tempo sem blackout.
Só na segunda noite me lembrei de pendurar
edredões das sanefas e o escuro me recuperou.
Ouvia no rádio postos que não sei que transmitiam,
de vez em quando devia cair no torpor dos barbitúricos
que nenhum efeito tinham já. O ar
abafado e seco pelas tubagens que não desligavam,
as pernas entumesciam com as alergias cutâneas
debaixo de tecidos talhados com acrílicos.
 
Atira os troncos cortados contra a parede
da arrecadação, os pequenos toros caem
com um baque, tropeçam uns nos outros,
julgamos que repousam.
Mas depois vamos buscá-los para a segunda morte,
além da árvore donde os abateram
e nunca mais um pássaro lhes cantará.
Também vai às outras árvores que me serra,
algumas quase rente ao chão. Fazem
sombra de mais, começam a ficar
secas e com musgo. Parece que tudo
fica límpido quando tombam e as leva
para um sumidouro que não sei.
 
Nesse tempo o receio era tão pouco.
Bastava estar atento ao mover dos olhos,
à qualidade do sorriso, e todos éramos
a grata euforia da entrega,
a ejaculação que parecia nunca mais findar.
Sempre outro corpo mais
connosco seguiria. Jardins abertos.
Chuveiros com o mais forte abraço,
um odor diferente em cada alegria.
Talvez nos julgassem clandestinos
mas não findavam
as viagens súbitas para um novo leito.
 
A noite despeja-me na noite, semi acordado,
semi adormecido, num entre estado sem nome,
como devem estar
os cães encostados aos sem abrigo nos recantos
com os faróis contínuos do trânsito nocturno.
Levanto-me no rumor de todos os ares condicionados
atirados do hotel para o seu saguão, e lembro
a moto-serra do Sr. Antunes a desbravar o jardim fechado,
a deitar por terra o vento que batia nos ramos,
ficava tudo coalhado de um serrim pacífico
e os arbustos atrofiados pela capa sombria
logo se sentiam reerguer, alargar,
ao contrário desta noite que pesa cada vez mais.
Horas abauladas, procuro fugir-lhes no terror
das imagens nocturnas que numa outra luz
podem subir ao cérebro para despedaçá-lo.
 
Mais tarde haverá novos rebentos, demoram algum tempo,
vou-os arrancando a um por um
nos sítios onde não quero que mais nada cresça.
Outros sobem de novo cada vez mais alto, marcam
com os seus dias os meus dias
num sem retorno que também sou eu.
 
Depois nem já clandestinos.
A música dos novos bares
atenuava um pouco
a pretérita euforia das ruas.
Pareciam barcas donde se ouvia
clamores,
a corrente fulgurava entre a sombra
de cada corpo
e da margem acenavam-nos
com caminhos felizes
que podiam ser logo abandonados.
Ninguém já perseguia?
Um clarão fulminante
cruzava o céu de cada peito.
 
O terreiro agora ficou sem os ramos
piores, os de folhagem que enlameia a relva,
partiu a camioneta tão enchida
desses sítios que já tiveram ninhos
que só com muitas aselhas nos cordames
se consegue rebaixar, pequenos braços
vigorosos, resistem, não querem
enterrar-se uns pelos outros, procuram
permanecer, divago eu, como nós
ao deus inútil tanta vez pedimos.
Mas depois da nuvem de gasóleo da partida
logo me recolho e penso que na felicidade
é que julgamos inútil o que nos ajuda.
 
Mesmo assim os sonhos do passado morto
(morto, alguma vez morre tudo aquilo?)
um por um vêm e calcam com a sua verdade inteira,
persistem nos pequenos rolos de cérebro derramado,
seguem a sua astuta reconstituição, da infância
para cima, de mais tarde para baixo,
até conspurcarem todo o terreno parado do presente,
sem ameaça, só com a certeza do que não volta atrás,
do que ficou definitivamente assim.
A lenha precisa ainda de secar, repetia o Sr. Antunes,
durante um ano, são árvores de seiva matreira, todas
feitas para a falsidade, abrem um oco dentro da copa,
só na extremidade fazem bolas de verdura opaca,
fingem ser paisagem, amarelecem verdes ainda,
morrem sem dor, com uma longuíssima resignação,
tão longa que parece apenas um esquecimento.
 
Jardins abertos. Ninguém
os atravessa agora. Bares para o aturdimento
de músicas. Tudo passou a história.
Hoje há o cuidado. E se o amor
ultrapassa o prazer, restam
os testes e as suas repetições.
Só quis lembrar esta barra de fogo
apagada.
A vã duração do tempo.
 
Escrevo estes versos de memórias
alheado já.
Cada palavra mistura-se com todas.
Mas lembra-te que pensei sempre,
leitor, jardim aberto,
de algum modo em ti.
Deixa estar por uns segundos contigo
estas histórias. Dá-lhes
algum cuidado. Havia o Sr. Antunes. Pode ser
que voltes um dia a ter um tempo
para de novo te sentares com elas.
Dei-lhes o meu pensamento ameaçado
por um holofote tenaz.
Se encontrares nisso algo que te sirva
recorda-o no teu espírito
mesmo que nada se possa repetir.
 
Eu digo para mim que é esta
a utilidade da poesia,
a lembrança.
E que podes ainda, se parecem vãos
todos os meus efeitos,
largá-la de ti e haver proveito
em não seguires comigo todos os caminhos
onde ressoam passos do meu precipício.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001
 



29 novembro 2023

fernando pinto do amaral / sete degraus para a escada de jacob

 




 

2
 
Leve cresce uma sombra, a vã glória
de conquistar o inverno – sensação
fulgindo entre a folhagem. Um silêncio
no lusco-fusco, as vozes tão banais
ao longo da ruela. Anoitecida,
regressa a minha alma, o preto-e-branco
dos vultos infelizes retomando
os passos nos passeios, as conversas
que em vento se desfazem. Não importa
descrever a paisagem, ficar preso
a tudo o que nos fala, a este «dia
de inúteis agonias». Aqui estou,
horíssimas à espera, mãos nos bolsos,
como se alguém viesse. Ah, não, pra quê
o enigma de um amor em cada imagem?,
os êxtases da vida?, o choro?, o riso?,
a própria arte? De um ou de outro corpo
me fogem os versos, um incêndio. Tu
serás apenas isso, a tentação
de haver nos dedos chamas, outro céu
a desejar ainda. O que se afasta
do meu olhar são essas poucas luzes,
inanimadas frases prolongando
a silhueta efémera de um rosto
– agora?, há muito tempo? Sem resposta,
estrelas gerando estrelas, um negrume
vivendo-me certezas e receios,
o sabor de um destino ou, simplesmente,
um sonho iluminando-se de lágrimas,
um resto de horizonte nos meus olhos.
 
 
 
fernando pinto do amaral
sete degraus para escada de jacob
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000


28 novembro 2023

nuno casimiro / manifesto

 



 
Falo de um sorriso alastrando-se entre
As mãos,
preenchendo-me de uma ponta à outra do sangue.
Uma tatuagem nos olhos. A fita
suspensa no céu no momento em que recusou cair.
Um corpo esquivo.
 
Palavra que queima.
 
Falo do sal
que me seca os ossos.
Esse sorriso feito gente que eu
amo
mais que às palavras.
 
Falo de ti.
 
 
 
nuno casimiro
apeadeiro, revista de atitudes literárias
nr. 1 primavera 2001
quasi
2001
 




27 novembro 2023

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
V
Nos teus dedos nasceram horizontes
E aves verdes vieram desvairadas
Beber neles julgando serem fontes.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000


26 novembro 2023

joan margarit / o primeiro frio

 

Miguel Blay Fàbregas, The First Cold 1892



Acompanhei-te ao museu do parque.
Era uma manhã de Inverno. Parámos
diante d’O primeiro frio, uma escultura
de mármore cinzento: um velho que, despido,
enquanto o vento arrasta folhas mortas,
fita à distância.
Não são diferentes, a arte e a vida, disseste.
Mas eu via apenas um mármore frio,
e até retórico, e pensava em raparigas.
Entre aquele dia e agora, como um mar,
alastrou a minha vida.
E vêm, sulcando este mar cinzento,
as minhas memórias, cascos negros de navios.
Volto ao museu nesta manhã de Inverno,
e penso em ti ao atravessar o parque,
fitando a distância e cercado
de folhas mortas arrastadas pelo vento.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020



25 novembro 2023

georg trakl / no outono




 
Junto à cerca, os girassóis e seu brilho,
Doentes sentados ao sol, sem alento.
No campo, as mulheres cantam no trabalho,
Ouvem-se ao longe os sinos do convento.
 
Os pássaros contam lendas de encantar,
Ouvem-se ao longe os sinos do convento.
Há um violino no pátio a gemer.
E já o vinho escuro vão recolhendo.
 
Todos parecem felizes, libertos.
E já o vinho escuro vão recolhendo.
Os jazigos dos mortos estão abertos,
Pintados pelo sol que vai entrando.
 
 
 
georg trakl
a alma e o caos
100 poemas expressionistas
trad. joão barrento
relógio d´água
2001
 


 

24 novembro 2023

jorge velhote / bolonha, chuva e menina

 




 
                                                   para Mário Cláudio
 
 
 
No seu peito colegial, coberto de rumorosos plátanos de verona,
abriguei os dedos, a caruma das estrelas,
brancas pombas.
 
A claridade do dia findara; o odor da terra húmida
entardecia coalhando o azul de uns olhos que vindimavam
o sangue, o irisado da alma:
 
chovia. Pelo curriculum do vento partimos, misturando o amargo linho
                                                                                   [dos segredos,
A verdade dos sorrisos.
Por furtivos pomares, inquietos canaviais,
o corpo escondemos, os relâmpagos,
mágoas de silêncio –, prudentíssimas labaredas.
 
Embora chovesse, e muito, o corpo imitava o sol, secava
a erva. Penumbras de sombra a cada passo setembro
mordia de luz, modulava a ternura, intensamente.
Pelos campos, entre o íntimo perfume das vozes, um arado de loucura,
uma lágrima de engenhar sulcos, sementes, folhas, gomos de água,
galhos de melancolia,
 
gerações de chuva, secretos tanques enredando a noite,
a literária morte: o labirinto fulgurante de um versátil estilo
de aprendizagem desmedida.
 
Seduzida, na mão
um ramo de chuva, um jardim
de macerados lábios
 
dedicados.
 
 
 
jorge velhote
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



23 novembro 2023

josé agostinho baptista / regresso

 




 
Há muito que parti.
Abandonei as searas onde nunca vi os
desígnios de deus.
Abandonei a fé.
Caminhei sem destino,
procurei a árvores secreta dos irmãos,
e, com saudade e desvario, abandonei as casas.
 
Escondi-me.
Escondi o último verso numa noite sem fim.
E hoje escrevo para ti que às vezes me escreves,
do outro lado das terras.
Conhecerei um dia as falésias onde o garajau
paira,
quando chegar, pelas madrugada,
às portas do teu sonho?
 
De pé, sobre o promontório,
olhas para longe, para os meus barcos que
naufragaram.
 
 
 
josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006