18 abril 2023

jorge de sena / «quem muito viu…»

 
 
Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extenso da justiça justa;
 
e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si e o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –
 
não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.
 
Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontra-lo morto.
 
 
 
jorge de sena
arte de música (1968)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




17 abril 2023

josé saramago / estrelas poucas




 
Dizer-te rosa, aurora ou água solta,
Que mais é que palavras apanhadas
No refugo das línguas e das bocas?
Os mistérios são pouco o que parece,
Ou não chegam palavras a dizê-los:
Na fundura do espaço estrelas poucas.
 
 
 
josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987





 

16 abril 2023

luis alberto de cuenca / sem medo nem esperança

 
 
E de repente voltas do inferno
com um fato de gala impressionante
que recorda o que Dale Arden usou
quando Ming, o cruel, foi derrocado.
Fitámo-nos ambos nos olhos como
se fosse o primeiro dia da História.
E bailámos, bochecha com bochecha,
trasladados a um mundo sem amanhã
nem ontem, ardendo numa fogueira
de plenitude, como anjos rebeldes
que acabam por levar a sua avante
perdendo a batalha, como sombras
que, na vitória do amor, sem silêncio
se dizem, sem medo nem esperança,
as palavras que nunca se disseram.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018




15 abril 2023

ted hughes / horóscopo

 




 

Querias estudar
as tuas estrelas – as guardas que vigiavam
o pátio da tua prisão, o seu zodíaco. Os planetas
murmuraram na sua fala de poder babilónico –
como os ossos do feiticeiro. Tinhas razão em ter medo
do ruído que os ossos pudessem fazer,
da nitidez com que o ouvido podia ouvir
o que os ossos segredavam,
até mesmo os que estavam como estes, embutidos num corpo
     quente.
 
Só que tu não tinhas necessidade de calcular
os graus para saberes que o teu ascendente perturbava
Carneiro. Não tinha qualquer significado certo – nada mais
do que um rosto com uma cicatriz,
segundo o livro babilónico. Até onde
é que um mágico podia espreitar por dentro da pele?
 
Só tinhas de olhar
para o rosto mais próximo de uma metáfora
tirada do teu guarda-vestidos ou do teu prato
ou do sol ou da lua ou do teixo
para veres o teu pai, a tua mãe, ou a mim
trazendo-te o teu Destino completo.
 
 
 
ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000
 



14 abril 2023

maria teresa horta / os outros

 
 
Despimo-nos dos outros
secamente
e devagar ficamos
enlaçados
 
Enquanto a noite voa
no seu vento
procuramos a paz fora do tempo
e a ternura a meio da madrugada
 
Quem foi que nos
deixou
uma certeza?
 
Quem foi que nos
disse
encantamento?
 
Quem foi que nos
leu
a nossa vida?
 
Quem foi que
acendeu
o pensamento?
 
Que viagem difícil
de regresso
 
Que objecto difícil
de repor
 
Que adiado veneno
não tomado
 
Que estranha tempestade
sem fragor
 
Despidos meu amor
dos outros tarde
mas sedentos de esperança
sempre cedo
 
Acusados
Suspeitos
Devassados
 
A fazermos amor
do nosso medo
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
minha senhora de mim
dom quixote
2009
 



13 abril 2023

manuel resende / a parteira da história

 



 
Já nem sequer se consegue amar nem odiar a parteira da
     História e, vendo bem, que nos resta senão o humilde
     gosto de saber o trabalho bem feito quando o há,
De escovar a mão por fim preguiçosa na cadeira acabada?
Quanto a corpo, temos conversado, menino mimado
     sempre a pedir atenção e médicos e cama de dormir.
De repente, caímos em nós, dentro de nós, e não há nada
     lá dentro
A que nos agarrarmos.
 
 
 
manuel resende
em qualquer lugar seguido por
o pranto de bartolomeu de las casas
poesia reunida
edições cotovia
2018
 



12 abril 2023

novalis / os hinos à noite

 



 

 
2
 
Terá a manhã sempre que voltar? Não terminará jamais o poder da Terra? Agitação nefasta consome o celeste poisar das asas da Noite. Jamais ficará a arder sem fim a secreta oferenda do amor? O tempo da Luz é imensurável; mas o império da Noite é sem tempo e sem espaço. – Perene é a duração do sono. Sagrado sono, não sejas avaro de teus benefícios para todos os que nesta jornada terrena se consagram à Noite. Só os loucos te desconhecem, não sabendo de outro sono que a sombra que tu misericordiosamente sobre nós lanças no crepúsculo dessa vera Noite. Eles não te sentem no dourado caudal das uvas – na maravilha do óleo de amêndoas, no suco escuro da papoila. Não sabem que és tu que pairando no contorno dos seios das tenras donzelas tornas o seu regaço o Céu – não supõem que tu, vindo de histórias antiquíssimas ao nosso encontro, vens para abrires o Céu e trazeres contigo as chaves das moradas dos bem-aventurados, mensageiro silente de infindáveis segredos.
 
 
 
novalis
os hinos à noite
tradução de fiama hasse pais brandão
assírio & alvim
1998




11 abril 2023

léo ferré / eu cá sou da raça ferroviária

 



 

[…]
 
     Eu cá sou da raça ferroviária que fica a ver passar as
vacas
     Se não comêssemos as vacas, os carneiros e os restos
     Não conheceríamos nem as vacas, nem os carneiros nem
os restos…
     No fim de contas, criam-nos para nos darem bicadas
     Então, sejamos nós a dá-las!
     Costeleta para duas pessoas, conheces?
 
     Felizmente há a cama: um parque de estacionamento!
     Vens, meu amor?
     E depois, é como na roleta: apostamos, apostamos…
     Se a roleta só tivesse um buraco, obrigavam-nos a apostar
na mesma
     Aliás, é o que fazemos!
     Compreendo os jogadores: têm trinta e cinco possibilidades
de não se deixarem enrabar…
     E deixam, deixam…
     O drama, no casal, é que são dois
     E só há um buraco na roleta…
 
[…]
 
 
léo ferré
il n´y a plus rien / já não há nada
trad. antónio ferreira, luísa mariante e maria paiva
ler devagar
2017





10 abril 2023

jacques brel / o último repasto



 

No meu último repasto
Quero ver os meus irmãos
E os meus gatos e os meus cães
E a beira do mar
No meu último repasto
Quero ver os meus vizinhos
E também alguns Chineses
Em jeito de primos
E quero que se lá beba
Além do vinho da missa
Aquele vinho tão bonito
Que se bebia em Arbois
Quero que se lá devore
Após umas tantas sotainas
Uma faisoa
Vinda do Périgord
Depois quero que me levem
Ao cimo da minha colina
Ver as árvores fechar os
Braços para dormir
E depois quero ainda
Atirar pedras ao céu
E gritar Deus morreu
Uma última vez
 
No meu último repasto
Quero ver o meu burro
As minhas galinhas e os meus gansos
As minhas vacas e as minhas mulheres
No meu último repasto
Quero ver essas desavergonhadas
De quem fui dono e senhor
Ou que foram minhas senhoras
Quando tiver na pança
Com que afogar a terra
Quebrarei o meu corpo
Para impor silêncio
E cantarei aos berros
Para a morte que chega
As canções libertinas
Que metem medo às freirinhas
Depois quero que me levem
Ao cimo da minha colina
Ver o crepúsculo que se encaminha
Lentamente para a planície
E aí ainda de pé
Insultarei os burgueses
Sem medo e sem remorsos
Uma última vez
 
Após o meu último repasto
Quero que se vão todos embora
Que continuem o festim
Mas não sob o meu tecto
Após o meu último repasto
Quero que me instalem
Sentado só como um rei
Acolhendo as suas vestais
No meu cachimbo queimarei
As recordações de infância
Os sonhos inacabados
Os restos de esperança
E apenas conservarei
Para vestir a minha alma
A ideia de uma roseira
E um nome de mulher
Depois olharei
O cimo da minha colina
Que dança que se adivinha
E acaba por se afundar
E entre o cheiro das flores
Que não tarda a extinguir-se
Sei que terei medo
Uma última vez
 
 
 
jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997
 




 

09 abril 2023

laurie anderson / nascido, nunca interrogado

 



 
Era uma sala grande. Cheia de gente. De todo o género.
E tinham chegado todos ao mesmo edifício
Mais ou menos na mesma altura.
E eram todos livres. E interrogavam-se todos acerca do mesmo
                    assunto:
O que haverá por trás daquela cortina?
 
Tinhas nascido. Por isso, eras livre. Então, parabéns.
 
 
 
laurie anderson
anéis de fumo
poemas
tradução de joão lisboa
assírio & alvim
1997




08 abril 2023

david byrne / sem compaixão

 



 
Num mundo em que as pessoas têm problemas,
Num mundo em que as decisões são um modo de vida…
Os problemas de outras pessoas arrasam-me a cabeça.
A compaixão é uma virtude, mas eu não tenho tempo.
Tanta gente que tem os seus problemas.
Não estou interessado nos seus problemas.
Acho que já tive alguns problemas,
Mas agora tomei umas decisões.
Leva muito tempo a afastar o disparate
Forçais a minha compaixão até às últimas.
O meu nível de interesse baixa, o meu nível de interesse baixa.
Já ouvi o suficiente.
Não quero ouvir mais nada.
 
Estás o quê, apaixonado pelos teus problemas?
Acho que levaste isso longe demais.
Não é nada fixe ter um problema,
Não esperes que eu explique a tua indecisão.
Vai falar com o analista, não é para isso que lhe pagam
Andas… Falas… ainda funcionas como dantes.
Não tem nada a ver com a tua personalidade ou estilo.
Sê um pouco mais egoísta.
É capaz de te fazer bem.
 
 
 
david byrne
pontos de vista
trad. de jorge pires
assírio & alvim
1988




07 abril 2023

leonard cohen / nada posso perder


 
Quando deixei a casa de meu pai
o sol estava a meia altura,
o meu prendeu-o ao meu queixo
como um rainúnculo amarelo.
 
O meu era um bruxo
um feiticeiro, trapaceiro, mentiroso
mas aquele foi o seu melhor truque,
despedimo-nos com um beijo em chamas.
 
Um quilómetro acima das cataratas de Niágara
uma pomba trouxe-me a notícia
da sua morte. Não perdi um passo,
não há nada que possa perder.
 
Amanhã inventarei um truque
que esta noite ignoro,
o vento, o poste dir-me-ão qual
e a amistosa luz que cega.
 
 
 
leonard cohen
poemas e canções
flores para hitler
tradução margarida vale de gato e manuel alberto
relógio d´água
1999


 


06 abril 2023

bob dylan / soprando no vento

 



 
Por quantas estradas tem um homem de andar
Até que se possa chamar-lhe homem?
Sim, e quantos mares tem uma pomba branca de cruzar
Até que durma na areia?
Sim, e quantas vezes devem as balas de canhão voar
Até serem para sempre banidas?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento
A resposta está soprando no vento
 
Quantos anos pode uma montanha existir
Até ser levada pelo mar?
Sim, e quantos anos têm algumas pessoas de existir
Até que lhes permitam ser livres?
Sim, e quantas vezes pode um homem virar a cabeça
Fingindo que nada vê?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento
A resposta está soprando no vento
 
Quantas vezes tem um homem de erguer o olhar
Até que possa ver o céu?
Sim, e quantos ouvidos deve um homem ter
Até poder ouvir pessoas a gritar?
Sim, e quantas mortes serão precisas até que saiba
Que demasiadas pessoas morreram?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento
A resposta está soprando no vento
 
 
 
bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
the freewheelin
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008