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07 outubro 2023

ted hughes / a máquina

 
 
 
A escuridão devorava-te. E o medo
de seres esmagada. «Uma enorme máquina escura»,
«a mó trituradora e indiferente das circunstâncias». Depois
de olhares o poente alaranjado, foram estas as palavras
que escreveste numa folha. Tinham vindo ter contigo
e eu não. Quando tentaste
fazer-me subir até ao cimo da escada, foi esse terror
que chegou em vez de mim. Enquanto
eu estava, se calhar, sentado com o Lucas, sem outro propósito
do que de cuidar do cão
que não tinha. Um cão a sério
talvez tivesse fitado o vazio,
com os pêlos arrepiados
enquanto a máscara grotesca do teu Mãe-Pai,
metade pedreira, metade hospital, mas no seu toso
de uma força irresistível, cheia dos teus poemas por escrever,
vinha até mim, invisível sem um murmúrio
por entre os imóveis salgueiros,
através da parede do The Anchor,
onde eu esvaziava a minha Guinness de um só trago
sorvendo-me obscuramente
para o interior do outro mundo
onde encontraria a minha casa. Os meus filhos. E a minha vida
sempre a tentar subir os degraus agora de pedra
em direcção à porta agora vermelha
que tu, no teu jeito habitual, abririas
ainda com tempo para falar.
 
 
 
ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000
 




15 abril 2023

ted hughes / horóscopo

 




 

Querias estudar
as tuas estrelas – as guardas que vigiavam
o pátio da tua prisão, o seu zodíaco. Os planetas
murmuraram na sua fala de poder babilónico –
como os ossos do feiticeiro. Tinhas razão em ter medo
do ruído que os ossos pudessem fazer,
da nitidez com que o ouvido podia ouvir
o que os ossos segredavam,
até mesmo os que estavam como estes, embutidos num corpo
     quente.
 
Só que tu não tinhas necessidade de calcular
os graus para saberes que o teu ascendente perturbava
Carneiro. Não tinha qualquer significado certo – nada mais
do que um rosto com uma cicatriz,
segundo o livro babilónico. Até onde
é que um mágico podia espreitar por dentro da pele?
 
Só tinhas de olhar
para o rosto mais próximo de uma metáfora
tirada do teu guarda-vestidos ou do teu prato
ou do sol ou da lua ou do teixo
para veres o teu pai, a tua mãe, ou a mim
trazendo-te o teu Destino completo.
 
 
 
ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000
 



26 setembro 2014

ted hughes / um sonho




O teu pior sonho
tornou-se realidade: aquele toque à campainha ─
não um simples acaso num milhão
mas o meteorito, caído pela nossa chaminé abaixo,
com o nosso nome gravado.

Não são os sonhos, disse eu, mas as estrelas fixas
que governam a nossa vida. A ânsia do ser inteiro,
inexorável, como uma pessoa a dormir absorvendo
ar para dentro dos pulmões. Tiveste de erguer
a tampa do caixão uma polegada.
No teu sonho ou no meu? Estranha caixa de correio.
Retiraste o envelope. Era
uma carta do teu pai. «Cheguei.
Posso ficar contigo?» Eu não disse nada.
Para mim, um pedido era uma ordem.

Depois veio a Catedral.
Chartres. Seja como for tínhamos chegado a Chartres.
Não era a primeira vez que lá ias.
Recordo pouco mais
que um jarro bretão. Encheste-o
com tudo o que tínhamos. Até ao último franco.
Disseste que era para a tua mãe.
Esvaziaste o nosso oxigénio
para dentro daquele jarro. Chartres
(isto consegui salvar)
ficou suspensa no teu rosto, uma mantilha,
escurecida, um rendilhado carbonizado ─
como depois de um incêndio. Como uma enfermeira,
cuidaste do que restava do teu pai.
Vertendo as nossas vidas para fora daquele jarro
no seu pequeno-almoço. Depois partiste-o,
fizeste-o em bocados, estrelas grosseiras,
e deste-os à tua mãe.

«Quanto a ti», disseste-me, «dou-te autorização
para te lembrares deste sonho. E para pensares nele.»



ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000




25 janeiro 2012

ted hughes / fidelidade




Era um lugar para viver. Andava
só a ver passar o tempo, a namorar-te,
a flutuar na maré da manhã com as confusas sensações
dos meus vinte e cinco anos. Esvaziada e redecorada
À la mode, a Alexandra House
tinha-se tomado a sopa dos pobres. Estes eram os dias
anteriores à moda vanguardista dos cafés.
A ruidosa cantina do Restaurante Britânico,
uma das marcas deixadas pela guerra,
era um lugar para retemperar noitadas com pequenos-almoços.
Mas a Alexandra House era o lugar onde se ia para ser visto.
As raparigas que recebiam viviam no andar de cima,
acompanhadas por um grupo de perdidos, pessoas que só
  dormiam de dia,
exaustos de andarem pela noite. Nem sei como
consegui um colchão ali, num quarto do andar de cima,
com vista para Petty Cury. Um colchão
sem mais, em cima de umas tábuas nuas, num quarto vazio.
Era tudo o que eu tinha, o meu caderno e aquele colchão.
Sob os pegajosos ouriços dos castanheiros que se abriam,
pelo mês de Junho, abandonei o emprego, preocupava-me
só contigo, esbanjando tudo o que tinha poupado.
Livre da Universidade perdia-me
nas suas liberdades. Todas as noites
dormia naquele colchão, debaixo de uma manta,
com uma rapariga encantadora, que acabava de se escapar
ao marido para aquela experiência limite
de servir na sopa dos pobres. Que
cavalheirismo se apoderou de mim? Penso nisto tudo
como se tivesse acontecido num tempo que nunca passou,
que nunca usei, e ainda está, portanto, em meu poder.
Essa rapariga e eu dormimos nos braços um do outro,
nus e tranquilos como amantes, todas as noites, durante um mês,
sem nunca termos feito amor. Uma qualquer lei sagrada
tinha sido inventada só para mim.
Mas também ela lhe obedecia, como uma sacerdotisa,
delicada e meiga e completamente nua a meu lado.
Seguia com o dedo os arranhões que tu tinhas acabado
  de inscrever
a toda a largura das minhas costas, e até parecia que se queria
  juntar a mim
na minha obsessão, na minha concentração,
para manter a minha preocupação intacta.
Nem uma única vez me convidou, nunca tentou nada.
E eu nunca movi um dedo para além
de um consolo fraterno. Eu era como uma irmã,
e aquilo nunca me pareceu antinatural. Estava absorto,
tão fechado em ti, de uma forma tão cega,
que tudo o que não fosses tu não existia para mim.
E ainda hoje medito — embora já tenha dúvidas
se é motivo para me orgulhar, ou para me lamentar. A sua amiga
tinha um quarto maior, e era mais selvagem.
Mudámo-nos e ficámos no quarto dela. Aquele quarto enorme
transformou-se em dormitório e em quartel-general
alternativo a St Botolph’s. Bonita e roliça,
com um desenvergonhado riso de dentes ralos, esta
  sua amiga
fez tudo o que pôde para me ter dentro dela.
E nunca saberás da batalha
que eu travei para manter o sentido às minhas palavras,
no mundo que nós estávamos a construir.
Eu tinha medo que, se perdesse aquela luta,
alguma coisa nos abandonasse. Erguendo do solo uma
daquelas raparigas nuas, enquanto elas me sorriam
nos seus vinte e poucos anos, coloquei-as
no limiar do nosso improvável futuro
como aqueles que, precisando de proteger a sua casa
tinham por hábito sepultar, no limiar da nova casa,
uma criança inocente.





ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000