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04 janeiro 2024

leonard cohen / metade do mundo perfeito

 



 

Ela vinha ter comigo todas as noites
E eu cozinhava, servia-lhe chá
Devia ter então mais de trinta anos
Ganhara dinheiro, vivera com homens
 
Deitávamo-nos para dar e receber
Debaixo do mosquiteiro branco
E como não começámos a contar
Vivemos mil anos num só
 
As velas ardiam
A lua descia
A colina polida
A cidade leitosa
Transparente, ligeira, luminosa
Revelando-nos a nós os dois
Nesse plano fundamental
Em que o amor não tem vontade, controlo,
Limites
E se encontra metade do mundo perfeito
 
 
 
leonard cohen
a chama
alerta azul
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019




07 abril 2023

leonard cohen / nada posso perder


 
Quando deixei a casa de meu pai
o sol estava a meia altura,
o meu prendeu-o ao meu queixo
como um rainúnculo amarelo.
 
O meu era um bruxo
um feiticeiro, trapaceiro, mentiroso
mas aquele foi o seu melhor truque,
despedimo-nos com um beijo em chamas.
 
Um quilómetro acima das cataratas de Niágara
uma pomba trouxe-me a notícia
da sua morte. Não perdi um passo,
não há nada que possa perder.
 
Amanhã inventarei um truque
que esta noite ignoro,
o vento, o poste dir-me-ão qual
e a amistosa luz que cega.
 
 
 
leonard cohen
poemas e canções
flores para hitler
tradução margarida vale de gato e manuel alberto
relógio d´água
1999


 


08 julho 2020

leonard cohen / quando o desejo repousa



Sabes que estou a olhar para ti
sabes em que estou a pensar
sabes que estás interessada
sou muito hábil
vais esquecer-te de que sou velho
a menos que te queiras lembrar
a menos que queiras ver
o que acontece ao desejo
como ele se torna livre e
desavergonhadamente interessado no amor
por cada mulher
                      e pelas suas meias.
Quando o desejo repousa,
fazem-lhe sinal duas pessoas
distantes sobre uma manta verde
(ou serão as flores do musgo?);
duas pessoas que acenam ao longe
estendidas como coisas
                              que têm de secar
com sorrisos ternos nos
                              rostinhos redondos;
acenam ao desejo
enquanto este repousa em primeiro plano
maciço, tranquilo,
fiel como um cão feito de lágrimas.




leonard cohen
a chama
poemas
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019






25 novembro 2019

leonard cohen / não me demorei em mosteiros europeus



Não me demorei em mosteiros europeus
nem descobri por entre as ervas altas campas de cavaleiros
que caíram tão formosamente quanto as suas baladas contam;
não separei as ervas
nem intencionalmente as deixei cobertas de colmo.

Não libertei o meu pensamento para que vagueasse e aguardasse
naquelas grandiosas distâncias
entre as montanhas de neve e os pescadores,
como uma lua,
ou uma concha debaixo da água que corre.

Não contive a minha respiração
para que pudesse ouvir o fôlego de Deus,
nem domei o bater do meu coração com um exercício,
nem tive fome de visões.

Embora o tenha observado muitas vezes
não me transformei na garça,
deixando o meu corpo na praia,
e não me transformei na truta luminosa,
deixando o meu corpo no ar.

Não venerei feridas e relíquias,
nem pentes de ferro,
nem corpos envoltos e queimados em pergaminhos.

Não sou infeliz há dez mil anos.
Durante o dia rio-me e durante a noite durmo.
Os meus cozinheiros favoritos preparam as minhas refeições,
o meu corpo purifica-se e restaura-se a si mesmo,
e todo o meu trabalho corre bem.



leonard cohen
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de cecília rego pinheiro 
assírio & alvim
2001







03 outubro 2019

leonard cohen / a névoa



Assim como a névoa não deixa marcas
Na colina verde-escura
Também o meu corpo não deixa marcas
Em ti, nunca vai deixar

O vento e o falcão têm o seu encontro
E o que resta para guardar?
Também tu e eu após o nosso encontro
Nos viramos, depois dormimos

Assim como a noite consegue resistir
Mesmo sem lua e sem estrelas
Também vamos resistir
Quando um de nós partir para longe


leonard cohen
a chama
alerta azul
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019






20 junho 2019

leonard cohen / uma rua



Já fui o teu bêbado preferido
Bom para mais uma gargalhada
Depois esgotou-se-nos a sorte
E não tínhamos os dois mais nada

Vestiste então um uniforme
Para lutar na Guerra Civil
Ficavas tão bem que não quis saber
Qual era o lado pelo qual lutavas

Não foi assim tão fácil
Quando te levantaste e foste
Mas vou guardar esta historieta
Para outra ocasião

Sei que o fardo é pesado
Quando o levas durante a noite
Há quem diga que está vazio
Mas isso não o torna leve

Deixaste-me a louça por lavar
E um bebé na banheira
E dás-te bem com as milícias
Usas a sua camuflagem

Sempre disseste que éramos iguais
Por isso quero marchar contigo
Um figurante na sequela
Da bandeira vermelha, branca e azul

Por favor, querida, não me ignores
Éramos fumadores e amigos
Esquece essa velha história
De traição e de vingança

Vejo o Fantasma da Cultura
Com os números no seu pulso
Saudar uma nova conclusão
Que todos nós perdemos

Chorei por ti esta manhã
E chorarei por ti de novo
Mas não controlo a dor
Por isso não me perguntes quando

Talvez ainda haja vinho e rosas



leonard cohen
a chama
problemas populares
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019







08 março 2019

leonard cohen / a aparente turbulência




Foste a última mulher jovem
que olhou para mim assim
Quando foi?
algures entre o 11 de Setembro e o tsunami
Olhaste para o meu cinto
e depois eu próprio olhei para o meu cinto
tinhas razão
não era nada mau
depois retomámos as nossas vidas.
Não sei como é a tua
mas a minha é curiosamente pacífica
por detrás da aparente turbulência
da litigância e do envelhecimento



leonard cohen
a chama
poemas
tradução de Inês Dias
relógio d´agua
2019







26 dezembro 2018

leonard cohen / o amor é um fogo




O amor é um fogo
Queima-nos a todos
Desfigura-nos a todos
É a desculpa do mundo
para ser tão feio




leonard cohen
poemas e canções
a energia dos escravos
tradução margarida vale de gato e manuel alberto
relógio d´água
1999








24 outubro 2018

leonard cohen / o regresso




Mas eu não me perdi
mais do que se perdem as folhas
ou vasos enterrados
Esta não é a minha hora
Só te faria cismar

Sei que deves chamar-me traidor
porque desperdicei o meu sangue
num amor sem sentido
e tens razão
Sangue como este
nunca ganhou um átomo de estrela

Sabes como chamar-me
ainda que semelhante ruído agora
apenas confundisse o ar
Nenhum dos dois pode esquecer
os passos que dançámos
as palavras que me estendeste
para que saísse do pó

Sim, desejo-te
não como uma folha ao tempo
ou o vaso do tempo
mas com um estreito anseio humano
que faz com que um homem recuse
outro campo que não o seu
Espero-te num
lugar inesperado da tua viagem
com uma chave enferrujada
ou uma pluma que não recolhes
até ao regresso
quando for claro
que o remoto e doloroso destino
nada mudou na tua vida



leonard cohen
poemas e canções
flores para hitler
tradução margarida vale de gato e manuel alberto
relógio d´água
1999