01 abril 2021

alejandra pizarnik / para além do esquecimento

 
 
alguma vez de um costado da lua
verás cair os beijos que brilham em mim
as sombras sorrirão altivas
luzindo o segredo que geme vagueando
virão as folhas impávidas que
algum dia foram os meus olhos
virão as murchas fragrâncias que
inatas desceram do alado som
virão as vermelhas alegrias que
borbulham intensas ao sol que
arredonda as harmonias equidistantes
no fumo dançante do cachimbo do meu amor
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
la tierra más ajena (1955)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020





 

31 março 2021

leopoldo maría panero / dedicatória

 
 
Para além de onde
ainda se esconde a vida, resta
um reino, resta cultivar
como um rei a sua agonia,
fazer florescer como um reino
a suja flor da agonia:
eu que tudo prostituí, ainda posso
prostituir a minha morte e fazer
do meu cadáver o último poema.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019





30 março 2021

manuel resende / voltar para casa

 
 
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
E seguir o rasto das árvores no chão,
Pelo caminho conhecido, com o coração mirrado nas mãos
E as mãos nos bolsos como um apontamento antigo?
Não haverá outra história para viver, um jornal para cada um,
E súbita a esperança a queimar os lábios, a palpitar na boca,
Pronta a saltar e a arder todo o corpo?
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
Cabisbaixa?
 
 
manuel resende
em qualquer lugar
poesia reunida
edições cotovia
2018





29 março 2021

joan margarit / passeando

 
 
Gosto de caminhar sozinho pelas ruas,
com as mãos atrás das costas, sem pressa,
entre as pessoas e os carros matinais.
Cumpridor, aquele rapaz
foi obediente toda a vida.
Hoje sai de trás daquele
que, durante tantos anos, foi o seu disfarce de homem.
Há algumas coisas que não mudaram,
coisas breves e suaves, como as ausências
que as primeiras luzes acendem no crepúsculo.
Recorda quando ao rapaz que hoje regressa
lhe explicavam que os mortos estavam no céu.
Este céu que é às vezes tão azul,
que é tão frio quando se afasta da terra,
tão negro quando se acendem as estrelas.
O rapaz regressa e agarra-o pela mão.
Os dois vão-se afastando
até serem um ponto no céu. Aves que passam.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




28 março 2021

bernardo soares / nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação...

 
 
Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.
 
Na mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser grande, e a da estupidez da nossa inexperiência, que forma uma segunda inteligência inferior. Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da juventude — devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade.
 
Ao homem superiormente inteligente não resta hoje outro caminho que o da abdicação.
 
s.d.
 


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
europa-américa
1986




 

27 março 2021

virgínia woolf / está uma noite lindíssima

 
 
(1921)
Quinta, 15 de Setembro
 
 
Está uma noite lindíssima – serena; o cavalo branco e o cavalo baio pastam juntos; as mulheres saem de casa sem motivo e ficam a olhar: ou a tricotar; o galo debica no prado no meio das galinhas; há estorninhos nas duas árvores, os campos de Asheham depois da ceifa ficaram da cor da belbutina branca; o Leonard está a armazenar maçãs por cima da minha cabeça. E o sol entra por uma cortina de pérolas de vidro; de modo que o vermelho e o verde das maçãs que ainda estão nas árvores fica pálido; a torre da igreja, uma mão-de-judas em prata erguendo-se entre as árvores. Irá isto evocar alguma coisa? Estou tão ansiosa por guardar este retalho, sabes. (…)
 
 
virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985

 




26 março 2021

herberto helder / as imagens

 
 
[…]
 
Num país estrangeiro, ao norte, cercados pela noite onde a neve palpita friamente.
 
O ruído chega ao quarto como um vapor ligeiro, indistintamente iluminado.
 
Falando baixo, enquanto a neve desliza pela janela e um comboio passa, brutal.
 
Isto ao mesmo tempo que a noite, a neve e o rumor.
 
E a conversa interrompe-se, tendo ficado pelo meio uma qualquer palavra, com sentido, essa também, porque todas as palavras eram animadas de uma inspiração capital.
 
Era tudo terrivelmente importante.
 
Tudo é importante, enquanto a noite cria o seu labirinto e o quarto se desloca para o coração do labirinto.
 
Estamos inclinados um para o outro, por dentro, e eu sinto uma vertigem leve, como se soubesse que o chão poderia não ser completamente seguro, e o abismo sempre prometido se fosse revelar.
 
O amado e terrível abismo.
 
[…]
 
 
herberto helder
apresentação do rosto
as imagens
porto editora
2020





25 março 2021

samuel beckett / o que é certo…

 
 
(…)
 
O que é certo é que, daqui a uma hora, será tarde de mais, daqui a meia-hora será noite, e ainda assim, não há a certeza, de quê, a certeza absoluta de quê, de que a noite impeça impeça o que o dia permite, àqueles que sabem governar-se, que querem governar-se, e que podem governar-se, que podem continuar a tentar. O nevoeiro dissipar-se-á, eu sei, por mais distraído que se esteja, o vento vai refrescar, quando a noite cair, e na montanha haverá o céu nocturno, com as suas luzes, e as dias Ursas para me servirem de guia, mais uma vez, de guia para os meus passos, esperemos pela noite. Tudo se enreda, os tempos enredam-se, primeiro só lá tinha estado, agora continuo a lá estar, daqui a pouco ainda lá estarei, penando a meia encosta, ou nos fetais que bordejam o bosque, são larícios, não tento compreender, nunca mais tentarei compreender, é assim que se diz, para já estou aqui, desde sempre, para sempre, vou deixar de ter medo das palavras caras, não são nada caras. Não me lembro de ter vindo, nunca poderei ir-me embora, estou de olhos fechados e sinto na face o húmus áspero e húmido, caiu-me o chapéu, não caiu longe, ou o vento levou-o para longe, apeguei-me muito às minhas coisas. Ora é o mar, ora é a montanha, em muitas alturas foi a floresta, a cidade, e também a planície, também já experimentei a planície, deixei-me ficar como morto em todos os cantos, de fome, de velhice, assassinado, afogado, e também sem motivo, muitas vezes sem motivo, de tédio, é coisa que dá alento, um derradeiro suspiro, e depois os quartos da minha santa morte, na cama, derreado ao peso dos meus penates, e resmungando sempre, as mesmas coisas, as mesmas histórias, as mesmas perguntas e respostas, bom menino, bastante, no extremo do meu mundo de ignorantes, nem uma imprecação, não, eu não era assim tão estúpido, ou então já não me lembro.
 
(…)
 
 
 
 
samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006





24 março 2021

marguerite yourcenar / poderias mergulhar…

 
 
Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornaram pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Como pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino.
 

marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995





 

23 março 2021

luís miguel nava / sem outro intuito

 
 
Atirávamos pedras
à agua para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificavam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
 
 

luís miguel nava
vulcão
poesia
assírio & alvim
2020




22 março 2021

fernando pinto do amaral / as time goes by

 
 
Fizera uma promessa: ir ao encontro
de uma estranha miragem, mal sabia
porquê – pedia apenas
«qualcosa da bere». Seria ridículo
ensinar truques ao destino, ouvir
a fala de um só deus. Ficava ali
sob o antigo temor da beleza,
sob o poder da noite. Ousadias, receios,
tudo parecia igual.
 
Luminosos golfinhos sorriam,
enfeitavam o cais, esse caos
reflectido nos seus olhos. Sim,
talvez fosse esse rosto a construir
o decorrer do tempo, um sentimento
em música de fundo – esplanadas
ao longo de palmeiras, a caminho
da maior solidão. Em San Remo
há mais de «cinco esquinas» e o Frágil
desaparecera noutro mar, submerso
em «prazer e glória» - «a flight for love
and glory». A Agustina
tem deveras razão, é necessário
o sofrimento. Ainda bem
que as promessas não são para cumprir
e há uma porta aberta sobre a água.
 
 
 
 
fernando pinto do amaral
até chegar o dia
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





21 março 2021

albano martins / para um desenho de júlio

 
júlio


O lápis,
o carvão
desenham
a margem fluida
dos cabelos
e das rosas,
os espelhos,
a
nudez dos apelos
 
 
albano martins
inconcretos domínios
edições nova renascença
1980





20 março 2021

rené crevel / a ponte da morte

 
 
(…)
 
Ora uma noite, que noite?, perceberam finalmente as prostitutas que os pés não eram para torturas de veludo negro mas nudez da pele, tal qual uma nudez de areia. E assim os tacões, que andaram séculos a fazê-las cair, todos se partiram e nasceram flores de sémen nas pedras do macadame. Mentiras, porém, já não podiam tolerar-se, finas fossem como as palmilhas de corda, e a vadiagem atira as alpercatas para lá do horizonte. Explodi, ó cores. Os criminosos têm mãos azuis. E vós, raparigas, se quereis bocas vermelhas basta passar nos lábios o dedo que o derradeiro amor vos manchou. No fundo do mar ressuscitam todos os africanos crédulos que tinham querido fazer uma viagem barata e afinal morrido à boca das fornalhas. Hão-de ser peixes, não tarda, que já vão de pernas ficando transparentes. Ouvi à luz dos monstros eléctricos as suas canções sem palavra nenhuma. Carregam-lhe no umbigo, os hipocampos, como um botão de campainha eléctrica. Serão horas do chá? Nada disso. Pontos de interrogação com cabeça de cavalo, das florestas de água sobem aos olhos de sábios europeus para rebentar na sua pele terrestre. Em pleno céu o navio-fantasma escreve a sua dança. Apartam-se muros que quiseram prender os ventos do espírito. Um sol de enxofre e amor acende-se atrás das pregas de um veludo cuja placidez tem excessivo peso. Os homens de todo o mundo compreendem-se pelo nariz. Um imprevisto geyser joga à casa do diabo as pedras que tinham querido revestir o chão. Vai uma ponte do planeta minúsculo à liberdade.
 
E da ponte da morte venham ver, venham todos ver, como a cabeça se ilumina.
 
 
 
rené crevel
filhas do vento
trad. aníbal fernandes
& etc
1984