Alguma coisa deve arder em nome desses
a quem faltam os céus,
se despenham e na rede nada lhes deixam,
nem um astro duro, ou sequer uma bota
mas um brilho louco talvez te fixe os olhos no tecto
no tanto que ouvirias
se em cima se despisse outra mulher,
no ritmo de uma história andando de boca em boca
a roupa caindo
e o próprio golpe se abre e floresce
seco e doce de tão vasta madurez
a música se descesse às regiões inferiores
cada peça abalando a vida no quarto
enreda-me então e cerco-lhe a sombra
como se pingasse, chovendo no balde
nesse pobre piano da espera
queima-me a boca um gomo só
e da fome de o ter escrito o sumo escorre
entre o sono,
a sede mistura as memórias
demora-se a gota na pétala mais escura
cresce e bebo o gosto cansado deste mundo
rasgo a garganta dessa toada antiga
uma vida grega que ouvi cantada
como a trazia um pássaro
a quem estendia grainhas num prato
e um resto de água e tinta
e este reflexo como receita de veneno
pedi-lhe ajuda, um rumo entre os papéis,
e a noite e o seu soluço nalgum jardim quebrado
o fio que o ligasse ou a poeira de algo mais,
um contorno mesmo se escapasse
num tão veloz e desatado juízo
deixando marcas de batom ou sangue
nem acho que me faça hoje tanta falta
podia acabar-me devagar espaçando duas notas
com a navalha de abrir ostras nos dentes
devorando o grito dos demais
comendo com eles no chão
o que o céu deixa quando avança
mas se nem chega para todos
e logo esfria o cadáver da época
se o tumulto se acaba mais cedo agora,
em vez da morte, eu nascia
se então me tocasse enfim um lugar
mais lavado na graça sem sentido das coisas
e assim por muito tempo a música subisse
para não se lhe ouvirem os gritos
diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020