22 maio 2020

maria teresa horta / dias de agrura


capa: gil maia


Não sei o que mais
custa
nestes fins de tarde

de doença e mágoa

Se o animal do medo
que pé ante pé
nos tenta entrar em casa

se este silêncio imenso
que ao chegar da rua
aflige e atordoa

Nesta cidade triste
em que
se tornou Lisboa



maria teresa horta
nervo/8 janeiro/agosto 2020
colectivo de poesia
2020







21 maio 2020

alejandra pizarnik / a carência



Eu não sei de pássaros,
não conheço a história do fogo.
Mas creio que a minha solidão deveria ter asas.


alejandra pizarnick
antologia poética
las aventuras perdidas  – 1958
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020














20 maio 2020

amalia bautista / no fundo



No fundo, são muito poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que nos comovem o coração, e menos
ainda as que o comovem muito tempo.
No fundo, são pouquíssimas as coisas
que importam de verdade na vida:
poder amar alguém e que nos amem,
nunca morrer depois dos nossos filhos.



amalia bautista
conta-mo outra vez
tradução de inês dias
averno
2020






19 maio 2020

luis alberto de cuenca / penso em ti



Os amantes pensam-se. Cada um
pensa que pensa muito mais no outro
que o outro nele. Estão centrados
no seu ofício pensante e não notam
os fios invisíveis com que o medo
vai enredando as suas reflexões
e matando o amor. Só o esquecimento
poderia resgatá-los dessa dúvida,
mas não estão dispostos a esquecer-se.


luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018








18 maio 2020

john freeman / o rapaz debaixo do carro



Naquela noite em Damasco
a sua função era dispor
o chá e o bolo
e um raminho de menta
num tabuleiro de prata
e percorrer
o caminho calcetado da entrada
até ao rapaz a quem pagavam
para dormir debaixo do carro.
Ele nunca chegou
a dizer o seu nome, que
aspecto teria,
ou se, ao chegar
à beira dele,
enroscado,
olhos pretos luzidios,
o teria surpreendido
a cantarolar sozinho
logo antes de o estrondo do metal
o calar para sempre.



john freeman
mapas
trad. miguel cardoso
tinta da china
2019







17 maio 2020

bernardo soares / reconhecer a realidade como uma forma de ilusão,



Reconhecer a realidade como uma forma da ilusão, e a ilusão como uma forma da realidade, é igualmente necessário e igualmente inútil. A vida contemplativa, para sequer existir, tem que considerar os acidentes objectivos como premissas dispersas de uma conclusão inatingível; mas tem ao mesmo tempo que considerar as contingências do sonho como em certo modo dignas daquela atenção a elas, pela qual nos tornamos contemplativos.

Qualquer coisa, conforme se considera, é um assombro ou um estorvo, um tudo ou um nada, um caminho ou uma preocupação. Considerá-la cada vez de um modo diferente é renová-la, multiplicá-la por si mesma. É por isso que o espírito contemplativo que nunca saiu da sua aldeia tem contudo à sua ordem o universo inteiro. Numa cela ou num deserto está o infinito. Numa pedra dorme-se cosmicamente.

Há, porém, ocasiões da meditação — e a todos quantos meditam elas chegam — em que tudo está gasto, tudo velho, tudo visto, ainda que esteja por ver. Porque, por mais que meditemos qualquer coisa, e, meditando-a, a transformemos, nunca a transformamos em qualquer coisa que não seja substância de meditação. Chega-nos então a ânsia da vida, de conhecer sem ser com o conhecimento, de meditar só com os sentidos ou pensar de um modo táctil ou sensível, de dentro do objecto pensado, como se fôssemos água e ele esponja. Então também temos a nossa noite, e o cansaço de todas as emoções aprofunda-se com serem emoções do pensamento, já de si profundas. Mas é uma noite sem repouso, sem luar, sem estrelas, uma noite como se tudo houvesse sido virado do avesso — o infinito tornado interior e apertado, o dia feito forro negro de um traje desconhecido.

Mais vale, sim, mais vale sempre ser a lesma humana que ama e desconhece, a sanguessuga que é repugnante sem o saber. Ignorar como vida! Sentir como esquecimento! Que episódios perdidos na esteira verde branca das naus idas, como um cuspo frio do leme alto a servir de nariz sob os olhos das câmaras velhas!

14-5-1930



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982






16 maio 2020

fernando pinto do amaral / fuga


Não há para o que resta deste mundo
nenhum jardim. O mais distante
paraíso
ficou para trás, cavaleiro
fugindo entre montanhas. Tantas vezes
eu fui a sua sombra, o seu mortal
refúgio.

«Una storia sanguinosa.»
Janela por onde olharemos
a nossa própria história, uma pequena
nuvem de fumo, as últimas conversas
de alguns adolescentes. Deixai-me seguir
os seus passos, transpor essa porta
tão estreita.

Quase todas as noites desejam
entrar aqui. Não saberemos nunca
esgotar a sua dor, os lugares mais perigosos
da vida. Tanto faz
ganharmos ou perdermos – eu só queria
dizer como o teu rosto nesse instante
trazia de outro céu a luz nos olhos.




fernando pinto do amaral
amor hereos
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000






15 maio 2020

mário cláudio / cefaleia


Sem que os víssemos nos viam
marcavam a hora,
elegiam a rua,
compravam um jornal que nem desfolhavam.

Eram estranhos,
retiravam um cartão,
abandonavam as mesas
precipitadamente.

Há anos isto foi,
os ossos nos
magoam desde então.


mário cláudio
hífen 4 abr/set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989







14 maio 2020

gastão cruz / thriller



Mil bares conheci cheios de gente
morta, como se aqueles dias vivos,

sem que eu soubesse, o dia de hoje fossem,
e talvez pertencessem ao filme

num clube visto outrora;
podia ser ali o paraíso, mas outrora

era agora: e aqui nenhuma vida
ou morte sobrevive


gastão cruz
relâmpago, revista de poesia nº 34
abril 2014








13 maio 2020

antónio gedeão / aurora boreal



Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.




antónio gedeão
6 poemas
edições joão sá da costa
1995







12 maio 2020

carlos de oliveira / infância



II

Tão pequenas
a infância, a terra.
Com tão pouco
mistério.

Chamo às estrelas
rosas.

E a terra, a infância,
crescem
no seu jardim
aéreo.

  


carlos de oliveira
turismo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998






11 maio 2020

luís miguel nava / o céu



Assoam-se-me à alma, quem
como eu traz desfraldado o coração sabe o que querem
dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração.



luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982












10 maio 2020

álvaro de campos / meu pobre amigo, não tenho compaixão que te dar.


Meu pobre amigo, não tenho compaixão que te dar.
A compaixão custa, sobretudo sincera, e em dias de chuva.
Quero dizer: custa sentir em dias de chuva.
Sintamos a chuva e deixemos a psicologia para outra espécie de céu.


Com que então problema sexual?
Mas isso depois dos quinze anos é uma indecência.
Preocupação com o sexo oposto (suponhamos) e a sua psicologia —
Mas isso é estúpido, filho.
O sexo oposto existe para ser procurado e não para ser compreendido.
O problema existe para estar resolvido e não para preocupar.
Compreender é ser impotente.
E você devia revelar-se menos.
"La Colére de Samson", conhece?
"La femme, enfant malade et [...]"
Mas não é nada disso.
Não me mace, nem me obrigue a ter pena!
Olhe: tudo é literatura.
Vem-nos tudo de fora, como a chuva.
A maneira? Se nós somos páginas aplicadas de romances?
Traduções, meu filho.
Você sabe porque está tão triste? É por causa de Platão,
Que você nunca leu.
E um soneto de Petrarca, que você desconhece, sobrou-lhe errado,
E assim é a vida.
Arregace as mangas da camisa civilizada
E cave terras exactas!
Mais vale isso que ter a alma dos outros.
Não somos senão fantasmas de fantasmas,
E a paisagem hoje ajuda muito pouco.
Tudo é geograficamente exterior.
A chuva cai por uma lei natural
E a humanidade ama porque ama falar no amor.

9-7-1930



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993