03 março 2018

pedro oom / idade sem razão




Os animais
cuja vivência
são as visitas
que todos temos feito
a girafa
ou o crocodilo
bastam
para romper
a fascinação
idade
cartesiana
tanto
do direito
como
do avesso


pedro oom
actuação escrita
& etc
1980


02 março 2018

pedro gil-pedro / para que ninguém sobreviva ao perdão





Num surto
alastram das várzeas – recidiva
traslação de gárgulas

a desarmar o fogo

no meio
do hangar o homem dirimindo os alçados

o jorro percutivo que o sustém pelas ilhargas.

só ele imagina como desabasse
nas traves de uma cria


pedro gil-pedro
para que ninguém sobreviva ao perdão
cosmorama
2008







01 março 2018

per aage brandt / quando duma coisa


  
*
quando duma coisa
decorre outra
e desta decorre
outra vez a primeira
então a primeira
não vale a pena

*

per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004








28 fevereiro 2018

paulo teixeira / agosto azul





A Grécia podia ser aqui, entre escarpas
que os seus pés sulcaram de degraus
e o compasso marcado pelas ondas no ouvido.
A terra eleva-se dessa costa submersa
para esta fronteira indolor em que vivem,
escoltados por velas que navegam junto
à praia, numa estação celebrada e eterna.

Corpos cunhados na depressão de uma onda
que emergem, na sua franja de espuma,
para a hora vaga de quem os vê, rapazes
com olhos da palidez do céu, deitarem,
um do outro, a cabeça no peito de armas.

Têm por língua um fraseado antigo
e por senha este costume licencioso.
O grito das gaivotas vai-lhes adormecendo
na areia o desejo e a memória de tudo
sob a luz de um sol que sempre esteve aqui.




paulo teixeira
autobiografia cautelar
gótica
2001








27 fevereiro 2018

jorge luís borges / os enigmas




Eu que sou o que agora está cantando
Irei ser amanhã o misterioso,
O morto, morador num silencioso
Deserto sem depois, antes ou quando.
Assim declara a mística. Mas eu
Creio-me indigno do Inferno ou Glória,
Embora nada afirme. A nossa história
Muda tal como as formas de Proteu.
Que errante labirinto, que brancura
Esplendorosa será a minha sorte
Quando me der o fim desta aventura
A curiosa experiência que é a morte?
Quero beber o cristalino Olvido,
Ser para sempre; mas nunca ter sido.



jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998








26 fevereiro 2018

pablo neruda / o preguiçoso




Continuarão a viajar coisas
de metal entre as estrelas,
subirão homens extenuados,
violentarão a Lua suave
e ali abrirão farmácias.

Neste temo de uva cheia
o vinho começa a viver
entre o mar e as cordilheiras.

No Chile bailam as cerejas,
cantam as moças morenas
e nas violas brilha a água.

O sol bate a todas as portas
e faz milagres com o trigo.

O primeiro vinho é rosado,
doce como um menino pequeno,
o segundo vinho é robusto
como a voz dum marinheiro
e o terceiro é um topázio,
uma papoila e um incêndio.

A minha casa tem mar e terra,
a minha mulher tem grandes olhos
da cor da avelã silvestre,
quando chega a noite o mar
veste-se de branco e de verde
e depois a Lua na espuma
sonha como noiva marinha.

Não quero mudar de planeta.



pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971







25 fevereiro 2018

bernardo soares / às vezes, em sonhos distraídos, que me surgem das esquinas...




Às vezes, em sonhos distraídos, que me surgem das esquinas do pensamento e da emoção, visiono amores. Uma vez me encontro desenrolando um enredo de uma paixão correspondida por uma tuberculosa génio, que havia escrito o seu livro imortal na esperança de não sei quê, sempre, coitada, à janela da casa caiada. Outras vezes é a marquesa, que mora na quinta alta, que, quando me conheceu residente perto de ali onde eu nunca estaria, me atrai a si sem querer; o nosso amor desenvolve-se sem história, e há uma grande conclusão. Outras vezes ainda o romantismo deixa as tuberculosas e a aristocracia, e há uma grande simplicidade nos desejos sonhados: ela foi encontrada entre a vida como uma flor entre ervas altas, colhi-a para o meu lar limpo e lindo, e a minha vida, pelo menos até onde vai o sonho, dorme quietudes entre sinceridades, e tudo é afago.

Ah, que enredos complexos, em conveses de navios, em ilhas distantes, em hotéis universais, em viagens passageiras, me não encantam a distracção como vestidos expostos.

Mas, de repente, e com um regresso de pesadelo estatelado, desperto do meu romantismo sexual, e coro a sós comigo de fazer com a mente de dentro a mesma coisa que fazem todos os homens. E tenho, como timbre de fidalguia fraseada, a vantagem ridícula de contra. Sim, às vezes, sonho deste modo. Às vezes sou costureira masculina, e tenho príncipes, que são princesas, e muitas vezes são outra coisa, na imaginação inevitável.

E então acordado de todo, rio, quase alto, de me ver assim, como se me visse nu por baixo da nudez, como se me conhecesse esqueleto da alma, e uma alegria ponteaguda valsa nos meus devaneios. Que tristeza!

s.d.




fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990







24 fevereiro 2018

filipe marinheiro / habito dentro da pele dum deserto….





habito dentro da pele dum deserto a prumo está um brilho fresco
de estalar a língua

os dedos sobem numa convulsão entrançada à poeira em erro

as pedras a salivarem contra a minha boca cantam
cantam as pedras em sofrimento casto e cantam
cantam como a escorregar garganta acima!

as dunas e cavernas deste deserto prendem-se no sol gestual
sol de ossos canibais:
– é um deserto que dança falésia abaixo
– é um deserto que molda as máscaras
– é um deserto que se estende para me devolver
todo o meu silêncio infinito

e toda a sua carne a parir numa desfeita noite aperta-me as mãos
que estão em choque no vento da cabeça

e a cabeça cai pela pele do deserto a cabeça quer regressar
às areias movediças ao mesmo tempo que se dobra nas horas
intermináveis ainda por estrangular todo o sangue

e a lisura do sangue transforma-se agora em cactos
– iluminando todo o lume noctívago



filipe marinheiro
noutros rostos
chiado editora
2014








23 fevereiro 2018

lawrence ferlinghetti / o castelo de kafka ergue-se sobre o mundo




               
                O Castelo de Kafka ergue-se sobre o
                                                           [mundo
como uma última bastilha
                                 do Mistério da Existência
Os seus acessos cegos nos confundem
                                                Caminhos íngremes
                partem dele e mergulham em nenhures
                                                     Estradas perdem-se no
                                                                                   [ar
como labirintos fios de central
                                              telefónica
através da qual todas as chamadas
                   se perdem no infinito
                Lá em cima
                        faz um tempo celestial
As almas dançam despidas
                                 em grupo
                   e como intrusos
                          na periferia de uma feira
                   espiamos o inatingível
                                     mistério imaginado
                               Contudo na parte de trás do
                                                             [castelo
                                   como na entrada dos artistas
                                           [de uma tenda de circo
há uma fenda funda e larga nas muralhas
                             pela qual até os elefantes
                                 podem entrar e dançar




lawrence ferlinghetti
a coney island of the mind
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972








22 fevereiro 2018

rui costa / o acidente IV




Levanta as tuas mãos
e se um dia te cansares
eu estarei pronto como o lugar da queda.



rui costa
«não sou quem era quando lhe mordi a orelha»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017











21 fevereiro 2018

mário-henrique leiria / simples como é




simples como é
a claridade é a coisa
mais difícil de encontrar

talvez porque a distância que nos
separa longa muito longa
e nítida
seja a torre de chumbo do nosso
próprio isolamento
talvez porque sentir
o aparecimento da madrugada
seja a origem do desespero
sombra trópico lâmina
entre nós dois

                ouve o que te digo

não esqueças que os meus lábios
mesmo quando desfeitos
e a claridade
essa não a procures não nunca
deixa-a ir comigo
até ao esgotamento do meu sangue
até ao limite
do meu corpo em carne viva




mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998









20 fevereiro 2018

luís miguel nava / a pouco e pouco








     Há entre o coração e a pele cumplicidades para cujo entendimento apenas corpos como o dele às vezes contribuem.

     Olhando-o nos olhos não é fácil destrinçar do alcantilado coração a cama onde dormíamos, ao mais pequeno sopro o sol parece evaporar-se.

     Por esse coração, ainda que escarpado, era, no entanto, fácil alcançar a pele, o mar à força de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em carne viva.




luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982







19 fevereiro 2018

josé luis garcía martin / o último convidado




Os amigos foram-se despedindo
e antes que pudesses dar-te conta
estás de novo a beber sozinho.
Também tu queres ir a qualquer lado
onde sem fim a festa continue.
Porém não podes. Há um convidado
ainda por chegar. Abres a porta,
sentas-te à sua espera, olhas ao longe
as lentas luzes de barcos na noite.
Um último convidado. Tens medo
de que afinal decida que não vem.
Os teus olhos fecham-se. Não te importes.
Podes ao vê-lo chorar como criança.
Mais vale que chegue contigo adormecido.


josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998