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22 outubro 2023

paulo teixeira / tempo sem fuga




 

 

I
 
Tempo sem tempo
para o amor virtual;
para recitar «em armas sublevam-se»
os seus desejos mais secretos
e a sorte nessas coisas.
 
Tempo sem tempo
para ir mais fundo e subir mais alto
– morte e ascese em nós –
quando a vida é um pesa-papéis
e o passado à mente vem
com sua beleza grutesca
e solidão hospitalar:
 
a flor da idade? (concedam-nos,
p.f., mais voláteis alambiques).
 
 
II
 
Fuga sem fuga
no silêncio
no sono
no clamor que nos leva a voz
e a modulação de certas palavras
fundo na via lacrimal.
 
Fuga sem fuga
na oração nocturna
na dança (coreia) sem o peso do mundo
no último alento antes do salto
para a graça divina.
 
 
 
paulo teixeira
autobiografia cautelar
gótica
2001
 



 

12 junho 2022

paulo teixeira / «pátria»

 
 
À meia-noite acontecia a passagem do Equador.
A uma pergunta minha, a mãe apontava para o alto,
para onde iam os balões, cativos
de mão nenhuma, na esteira do luar.
 
Procurava no céu, o meu tecto de serviço,
o barbante, o laço de que o mundo seria
como que o presente de aniversário
por entre os falsos pendentes do céu.
 
Com a manhã desabotoando sobre nós
a sua mantilha e o topete das ondas
subindo até à coberta a manchar-me a camisa,
o Equador seria os pares arejando no salão
 
de baile os trajes de gala e a música
por que escorregara a caminho do sono.
Um rito de passagem só para adultos
enfileirando na excursão ao Ultramar:
 
o transmontano que sonha, palitando
os dentes, ser rei de castelos no Niassa
e o mancebo que vai empacotado para a guerra
vivem, enquanto o altifalante ecoa
 
o estertor de «Angola é Nossa»,
uma demissão de tudo até à vista de terra.
 
 
 
paulo teixeira
autobiografia cautelar
gótica
2001




 

28 fevereiro 2018

paulo teixeira / agosto azul





A Grécia podia ser aqui, entre escarpas
que os seus pés sulcaram de degraus
e o compasso marcado pelas ondas no ouvido.
A terra eleva-se dessa costa submersa
para esta fronteira indolor em que vivem,
escoltados por velas que navegam junto
à praia, numa estação celebrada e eterna.

Corpos cunhados na depressão de uma onda
que emergem, na sua franja de espuma,
para a hora vaga de quem os vê, rapazes
com olhos da palidez do céu, deitarem,
um do outro, a cabeça no peito de armas.

Têm por língua um fraseado antigo
e por senha este costume licencioso.
O grito das gaivotas vai-lhes adormecendo
na areia o desejo e a memória de tudo
sob a luz de um sol que sempre esteve aqui.




paulo teixeira
autobiografia cautelar
gótica
2001








23 março 2012

paulo teixeira / auto-de-fé

  


Quando o amor é como os papéis velhos
e anseia por mais arte que a do poema
o coração é o forno onde ardem palavras.

                    *

Nesse dia  elas foram, amarradas com barbante,
viúvas precipitando-se dentro da pira.
Fiquei a vê-las abrirem-se como pétalas
para  logo definharem a meus olhos
numa florescência não cumprida.
O seu frémito era ainda uma ânsia minha.

Remexi as cinzas, agitei o ar com as mãos.
Vi como um poema se mostra servil ante o fogo.
E pensei: ardessem também os meus dedos!
Para que o poema não deixe crias ao morrer
e não mais confira o direito à vida
do que nele vai escrito.

                    *

Porque o amor é a arte que fica além do poema,
no dia em que não escrever mais poemas
sei que o amor resgatará o meu corpo da chama.





paulo teixeira
autobiografia cautelar
gótica
2001