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23 outubro 2024

pablo neruda / esquecido no outono

 
 
Eram sete e meia
do Outono
e eu esperava
não interessa quem.
O tempo
cansado de estar ali comigo
a pouco e pouco desandou
e deixou-me ali sozinho.
Fiquei então com a areia
do dia, com a água,
sedimentos
duma semana triste, assassinada.
 
– Que foi? – perguntaram-me
as folhas de Paris. – Quem é que esperas?
 
E assim fui várias vezes humilhado
primeiro pela luz que se apagava
depois por cães, por gatos e gendarmes.
 
Fiquei só
como um cavalo só
quando no pasto não há noite nem dia,
apenas sal do Inverno.
Fiquei
tão sem ninguém, tão vazio
que choravam as folhas,
as últimas, e depois
caíam como lágrimas.
 
Nunca antes
nem depois
fiquei tão de repente só.
E foi à espera de quem,
não me recordo,
foi tolamente,
passageiramente,
mas aquilo
foi a instantânea solidão,
a mesma
que se tinha perdido no caminho
e num instante como a própria sombra
desenrolou o seu infinito estandarte.
 
Então saí daquela
esquina louca
com os passos mais rápidos que tive,
foi como se fugisse
da noite
ou duma pedra escura e roladora.
Não é isto que eu conto
mas passou-se quando estava à espera
de não sei quem um dia.
 
 
 
pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




20 maio 2023

pablo neruda / acolhe-me no tear da tarde

 
 
Acolhe-me no tear da tarde,
quando o anoitecer vai urdindo
o seu vestuário e palpita no céu
uma estrela cheia de vento.
 
Traze-me a tua ausência até ao fundo,
pesadamente, com os olhos tapados,
atravessa-me a tua existência, admitindo
que este meu coração está destruído.
 
 
 
pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




07 novembro 2022

pablo neruda / volta o outono

 
 
Um enlutado dia cai dos sinos
como teia tremente duma vaga viúva,
é uma cor, um sonho
de cerejas afundadas na terra,
é uma cauda de fumo que chega sem descanso
para mudar a cor da água e dos beijos.
 
Não sei se me entendem; quando lá do alto
se avizinha a noite, quando o solitário poeta
à janela ouve correr o corcel do outono
e as folhas do medo calcado estalam nas suas artérias,
há qualquer coisa sobre o céu, como língua de boi
espesso, qualquer coisa na dúvida do seu e da atmosfera.
 
Voltam as coisas ao lugar,
o advogado indispensável, as mãos, o óleo,
as garrafas,
todos os indícios da vida: sobretudo as camas
estão cheias dum líquido sangrento,
as pessoas depositam a confiança em sórdidos
                                                        [ouvidos,
os assassinos descem escadas,
e afinal não é isto, mas o velho galope,
o cavalo do velho outono que treme e dura.
 
O cavalo do velho outono tem a barbada
                                                       [vermelha
e a espuma do medo cobre-lhe as ventas
e o ar que o segue tem forma de oceano
e perfume de vaga podridão enterrada.
 
Todos os dias desce do céu uma cor de cinza
que as pombas devem repartir pela terra:
a corda que o esquecimento e as lágrimas
                                                   [entretecem,
o tempo adormecido longos anos dentro dos
                                                            [sinos,
tudo,
as velhas roupas traçadas, as mulheres que
                                      [vêem chegar a neve,
as papoilas negras que ninguém pode
                                   contemplar sem morrer,
tudo vem cair às mãos que levanto
no meio da chuva.
 
 
 
pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




26 fevereiro 2018

pablo neruda / o preguiçoso




Continuarão a viajar coisas
de metal entre as estrelas,
subirão homens extenuados,
violentarão a Lua suave
e ali abrirão farmácias.

Neste temo de uva cheia
o vinho começa a viver
entre o mar e as cordilheiras.

No Chile bailam as cerejas,
cantam as moças morenas
e nas violas brilha a água.

O sol bate a todas as portas
e faz milagres com o trigo.

O primeiro vinho é rosado,
doce como um menino pequeno,
o segundo vinho é robusto
como a voz dum marinheiro
e o terceiro é um topázio,
uma papoila e um incêndio.

A minha casa tem mar e terra,
a minha mulher tem grandes olhos
da cor da avelã silvestre,
quando chega a noite o mar
veste-se de branco e de verde
e depois a Lua na espuma
sonha como noiva marinha.

Não quero mudar de planeta.



pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971







11 outubro 2016

pablo neruda / walking around



Acontece que me canso de ser homem.
Acontece que entro nas alfaiatarias e nos cinemas
abatido, impenetrável, como um cisne de feltro
vogando numa água de origem e de cinza.

O cheiro das barbearias faz-me gritar em lágrimas.
Eu só quero um descanso de pedras ou de lã,
eu só quero não ver as lojas e os jardins,
mercadorias, óculos, ascensores.

Acontece que me canso destes pés, destas unhas,
e do cabelo e da sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

E no entanto seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
há dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos
que deviam ter chorado de vergonha e de espanto,
com fúria, com esquecimento,
passo, atravesso escritórios e centros ortopédicos
e pátios onde há roupa a secar num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sujas.



pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




17 novembro 2014

pablo neruda / tu eras também uma pequena folha



Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

  

pablo neruda