07 novembro 2022

pablo neruda / volta o outono

 
 
Um enlutado dia cai dos sinos
como teia tremente duma vaga viúva,
é uma cor, um sonho
de cerejas afundadas na terra,
é uma cauda de fumo que chega sem descanso
para mudar a cor da água e dos beijos.
 
Não sei se me entendem; quando lá do alto
se avizinha a noite, quando o solitário poeta
à janela ouve correr o corcel do outono
e as folhas do medo calcado estalam nas suas artérias,
há qualquer coisa sobre o céu, como língua de boi
espesso, qualquer coisa na dúvida do seu e da atmosfera.
 
Voltam as coisas ao lugar,
o advogado indispensável, as mãos, o óleo,
as garrafas,
todos os indícios da vida: sobretudo as camas
estão cheias dum líquido sangrento,
as pessoas depositam a confiança em sórdidos
                                                        [ouvidos,
os assassinos descem escadas,
e afinal não é isto, mas o velho galope,
o cavalo do velho outono que treme e dura.
 
O cavalo do velho outono tem a barbada
                                                       [vermelha
e a espuma do medo cobre-lhe as ventas
e o ar que o segue tem forma de oceano
e perfume de vaga podridão enterrada.
 
Todos os dias desce do céu uma cor de cinza
que as pombas devem repartir pela terra:
a corda que o esquecimento e as lágrimas
                                                   [entretecem,
o tempo adormecido longos anos dentro dos
                                                            [sinos,
tudo,
as velhas roupas traçadas, as mulheres que
                                      [vêem chegar a neve,
as papoilas negras que ninguém pode
                                   contemplar sem morrer,
tudo vem cair às mãos que levanto
no meio da chuva.
 
 
 
pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




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