16 novembro 2022

gil vicente / auto das fadas

 



 
Traz a feiticeira um alguidar e um saco preto
Em que traz os feitiços,
Os quais começa a fazer dizendo
 
 

     Alguidar, alguidar,
que feito foste ao luar
debaixo das sete estrelas,
com cuspinhos de donzelas
te mandei eu amassar:
ó cuspinhos preciosos
de beiços tão preciosos
dai ora prazer
a quem vos bem quer,
e dai boas fadas
nas encruzilhadas.
     Este caminho vai pera lá,
est’outro atravessa cá;
vós no meio, alguidar,
que aqui cruz não há-de estar.
     Embora esteis encruzilhada.
Perequi entrou, pereli saiu.
Bem venhades, dona honrada.
Vai a estrada pola estrada.
Benta é a gata que pariu
gato negro, negro é o gato.
Bode negro anda no mato,
negro é o corvo e negro é o pez,
negro é o rei do enxadrez,
negra é a vira do sapato,
negro é o saco qu’ eu desato.
     Isto é fersura de sapo,
que está neste guardanapo.
Eis aqui mama de porca,
barbas de bode furtado,
fel de morto excomungado,
seixinhos do pé da forca:
bolo de trigo alqueivado
com dous ratos no meu lar,
per minha mão sameado,
colhido, moído, amassado,
nas costas do alguidar.
     Achegade-vos a mim:
que papades, meu qu’rubim?
     Escumas de demoninhado.
Quem vo-las deu?
Dei-vo-las eu.
Fel de morto, meu conforto,
bolo cornudo, vós sabedes tudo,
bico de pego, asa de morcego,
bafo de drago, tudo vos trago,
eu não juro nem esconjuro,
mas galo negro suro
cantou no meu monturo.
E ditas as santas palavras,
ei-lo Demo vai, ei-lo Demo vem
co’as bragas dependuradas.
 
 
 
gil vicente
o surrealismo na poesia portuguesa
organização de natália correia
frenesi
2002




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