Às vezes, em sonhos distraídos, que me surgem das
esquinas do pensamento e da emoção, visiono amores. Uma vez me encontro
desenrolando um enredo de uma paixão correspondida por uma tuberculosa génio,
que havia escrito o seu livro imortal na esperança de não sei quê, sempre,
coitada, à janela da casa caiada. Outras vezes é a marquesa, que mora na quinta
alta, que, quando me conheceu residente perto de ali onde eu nunca estaria, me
atrai a si sem querer; o nosso amor desenvolve-se sem história, e há uma grande
conclusão. Outras vezes ainda o romantismo deixa as tuberculosas e a
aristocracia, e há uma grande simplicidade nos desejos sonhados: ela foi
encontrada entre a vida como uma flor entre ervas altas, colhi-a para o meu lar
limpo e lindo, e a minha vida, pelo menos até onde vai o sonho, dorme quietudes
entre sinceridades, e tudo é afago.
Ah, que enredos complexos, em conveses de navios,
em ilhas distantes, em hotéis universais, em viagens passageiras, me não
encantam a distracção como vestidos expostos.
Mas, de repente, e com um regresso de pesadelo
estatelado, desperto do meu romantismo sexual, e coro a sós comigo de fazer com
a mente de dentro a mesma coisa que fazem todos os homens. E tenho, como timbre
de fidalguia fraseada, a vantagem ridícula de contra. Sim, às vezes, sonho
deste modo. Às vezes sou costureira masculina, e tenho príncipes, que são
princesas, e muitas vezes são outra coisa, na imaginação inevitável.
E então acordado de todo, rio, quase alto, de me
ver assim, como se me visse nu por baixo da nudez, como se me conhecesse
esqueleto da alma, e uma alegria ponteaguda valsa nos meus devaneios. Que
tristeza!
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990
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