E, hoje, pensando no que tem sido a minha vida,
sinto-me qualquer bicho vivo, transportado num cesto de encurvar o braço, entre
duas estações suburbanas. A imagem é estúpida, porém a vida que defini é mais
estúpida ainda do que ela. Esses cestos costumam ter duas tampas, como meias
ovais, que se levantam um pouco em um ou outro dos extremos curvos se o bicho
estrebucha. Mas o braço de quem transporta, apoiado um pouco ao longo dos
dobramentos centrais, não deixa coisa tão débil erguer frustemente mais do que
as extremidades inúteis, como asas de borboleta que enfraquece.
Esqueci-me que falava de mim com a descrição do
cesto. Vejo-o nitidamente, e ao braço gordo e branco queimado da criada que o
transporta. Não consigo ver a criada para além do braço e a sua penugem. Não
consigo sentir-me bem senão — de repente — uma grande frescura de (…) daqueles
varais brancos e nastros de (...) com que se tecem os cestos e onde estrebucho,
bicho, entre duas paragens que sinto. Entre elas repouso no que parece ser um
banco e falam lá fora do meu cesto. Durmo porque sossego, até que me ergam de
novo na paragem.
5-4-1930
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982
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