Não é fácil ser alma.
Tem vantagens. Posso entrar na
pessoa que quiser e fazê-la falar
e mover-se como se fosse uma
marioneta. Grande coisa.
Para me vingar, às vezes chamo
Robertos às pessoas.
Actualmente, sou a alma dum
rapaz que teve um acidente de mota e está em coma há dois anos.
O corpo está ligado a uma
máquina. Não tem grande interesse.
O aspecto é simpático mas a
postura é parada. De mais para o meu gosto.
A alma dele, que sou eu, é
generosa e boa, apesar do rancor e do medo
que me minam de alto e baixo.
Actualmente está suspensa. Livre de vaguear e não sei que mais.
Tenho autorização. O pior é que
está limitada à partida. E porquê?
Porque esta pessoa está
apaixonada. Apaixonada por uma rapariga de dezanove anos.
Que não está apaixonada por
ele. Ainda por cima. É esta a herança que o rapaz me deixou.
A rapariga vem vê-lo todas as
semanas. Chama-se Eva. Julga-se uma santa.
Uma santa viria, pelo menos,
todos os dias. Fica meia hora, com cara de quem já está no velório.
Sente-se na obrigação. Caíram
da mota porque ela queria passar um vermelho,
tal era a ganância de chegar a casa para se
ver livre dele.
Chama-se Eva, para todos os
efeitos, que não se imaginam quais sejam.
É loura como o milho. Mas isso
é desculpa? Eu acho que não.
Tecnicamente estou apaixonada
por ela, constrangida a amá-la por todos os meios ao meu alcance.
Para mal dos meus pecados, que
são muitos.
Como alma posso entrar dentro
da pessoa que eu quiser.
A minha missão, até o rapaz
recuperar ou morrer e eu poder começar uma vida nova,
de preferência, regular, é
persegui-la e tentar que ela se apaixone por mim.
O pior é que, cada vez que mudo
de corpo, sou um bocadinho contaminada por ele.
O primado genético não existe -
mas tem influência.
Não posso entrar dentro dum
roberto das barracas, malabarista por profissão,
sem sair dele com uma certa
noção de injustiça e de equilíbrio.
Os cromossomas são como pingos
de água do mar. Fazem ferrugem numa alma.
Que me interessa ser bondosa se
habito um indivíduo tão estúpido
que não sabe pôr em prática
essa bondade?
John Steinbeck é um péssimo
escritor mas gosto da história,
pretensiosamente intitulada
"Of Mice and Men", do brutamontes,
que, sem querer, sufoca um rato
com festinhas.
A minha missão na vida é
arranjar um Roberto de quem ela goste.
O mundo é a minha ostra, como
dizia o outro. Posso escolher quem quiser.
O pior é que não conheço
ninguém. Isso e uma certa falta de paciência.
Eu sou eterna, não esqueçamos.
Não sou como os outros homens,
ou sequer como as outras
mulheres, que vêm e vão-se embora,
durando uma média de 75 anos,
geralmente desperdiçados em ninharias.
Sou alma. É de mim que falam os
pensadores.
Mesmo que não façam ideia do
que falam, sabem que sou eu que importo.
Seja Nietzche ou o padre da aldeia.
Odeio médicos. Antigamente uma
alma passava facilmente de pessoa para pessoa,
sem se demorar muito. Não havia
"máquinas".
Não havia debates sobre a ética
e o "timing" de desligá-las.
Hoje a vida prolonga-se para
além do suportável. Uma alma cansa-se.
No meu caso, que é moderno
porque o meu portador está tecnicamente vivo, é arrasante.
Tenho uma tarefa espinhosa. A
Eva. É certo que tenho direito a descansar
- a largar o pessoal e a
refugiar-me numa substância inerte,
como uma parede ou a porta dum
táxi - mas nunca posso dormir.
Estou sempre acordada. A Eva
dorme nove horas por noite e eu,
feito mesa de cabeceira ou
interruptor da luz, tenho de ficar a olhar para ela.
Acompanho-a vinte e quatro
horas por dia. Seja na forma de pessoa ou de objectos.
Ela tem uma vida interessante,
mas não há interesse
que aguente vinte e quatro
horas de vigilância. É monótono.
Leva muito tempo a lavar os
dentes. Demora uma hora a tomar banho.
Quando estou em mim - isto é,
quando sou só uma alma, etérea e feminina,
incorporada numa cortina de
chuveiro - tanto se me dá como se me deu vê-la nua.
As almas não são fufas. Quando
estou dentro dum homem, isto é,
quando poderia tirar algum
prazer, por muito vago, de vê-la nua,
ela fecha-me sempre a porta na
cara. É assim.
A minha história é fácil de
contar, mas penosa.
No entanto é curiosa, dada a
perdição em que vim a cair
e à maneira de ser da rapariga
que, vamos lá, amo do fundo de mim.
A Eva gosta de conhecer pessoas
mas não gosta de pessoas conhecidas.
Só lhe interessa o acto de
conhecer. Fala com empregados de café,
malucos que se passeiam à beira
do rio - enfim toda a gente.
Mas não tem amigos. Nem
namorados. Não liga à família.
Não tem planos nem hábitos.
Não faz nem recebe telefonemas,
excepto sob pressão.
O que dificulta as coisas. Como
é que eu vou engatá-la?
Quanto mais estabelecer uma
relação profunda.
Pergunto eu. Como se alguém
respondesse.
Começo comigo. Sou uma boa
alma. Limitada, mas segura de mim.
O que é que isto quer dizer,
não sei.
Tenho acessos de lirismo.
Compreende- se Sou solidamente espiritual.
Não se poderia esperar outra
coisa.
Os versos, para mim, são flocos
de aveia.
Quando entro num Roberto,
mete-me nojo a materialidade das pessoas
- os baços, as pulsões, os
movimentos intestinais.
O corpo é uma casa temporária
porque é rasca
- se Deus tivesse feito o mundo
com mais jeitinho, teria arranjado seres perfeitos,
merecedores de eternidade, isto
é, capazes de acompanhar o andamento da alma.
Mas as pessoas são básicas. No
fundo, até merecem o prazer e sofrimento
que lhes cabem na vida curta
que lhes é concedida.
Antes de entrar num Roberto,
entro num crucifixo que ela traz ao pescoço.
Como alma sei que Jesus foi
apedrejado e não crucificado,
mas como já disse um padre
inglês,
quem é que pagaria as alterações
arquitectónicas nas igrejas, para não falar na joalharia?
Quem é que gostaria de andar
com pedregulhos ao pescoço? A Eva.
Só que não tenho maneira de lhe
fazer saber.
Ela nunca tira o crucifixo.
Isto é, nunca me tira. Quando me chateio, passo para a t-shirt dela.
Doem-me os braços. Embora uma
alam não tenha braços, tem imaginação.
E só Deus sabe como dói a
imaginação.
E é assim, dolorosamente, que
começa a minha história.
É preciso ver que eles vivem
num mundo adormecido. Há muito
que desapareceram os sinais de
vida. As pessoas habituaram-se de tal maneira aos hábitos
que se esqueceram que havia
outras maneiras de fazer as coisas.
Ninguém desobedece. Ninguém
ousa. É o século XXI. É o Ocidente.
Tudo está realmente resolvido.
Mas não resta ninguém para se irritar com
isso.
Então a minha primeira tarefa é
acordá-la. Só ela. Para que a possibilidade de amor exista.
Nesse sentido, escolho um rapaz
de treze anos,
igual a outro por quem ela teve
uma paixão quando era mais nova.
Para não me estragar muito. Nem
sequer sei como se chama.
Sei é que, quanto mais velha e
completa a pessoa em que me torne, mais eu me desgasto.
Isto é, mais me afasto do meu
portador, estendido no hospital, ligado à máquina, que se chama...
também não sei. Sei que está
apaixonado por ela. Como vêem, já estou a perder-me.
Não é que seja uma sensação má.
Mas é, no mínimo, desleal.
Situemo-nos. Como ainda há
gaivotas, e dado os meus poderes de observação,
torno-me numa delas. Cheiram
mal mas têm um bom ponto de vista e são amadas pelo público.
Entro na cidade deles. No país
morto.
Voar é como dormir - não tem
graça nenhuma depois dos primeiros cinco minutos.
miguel esteves cardoso
a phala / 8
assírio & alvim
lisboa
1995