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02 junho 2023

octavio paz / madrigal



 

Mais cristalina
que essa gota de água
entre os dedos da trepadeira
meu pensamento estende uma ponte
de ti mesma a ti mesma
                                   Vê-te
mais real que o corpo que habitas
imóvel no centro de minha fronte
 
Nasceste para viver numa ilha
 
 
octavio paz
antologia poética
iniciação (1964-1968)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984


 



07 maio 2020

octavio paz / teu nome



Nasce de mim, de minha sombra,
amanhece em minha pele,
aurora de luz sonolenta.

Pomba brava teu nome,
tímida sobre o meu ombro.


octavio paz
antologia poética
liberdade sob palavra (1935- 1957)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984











30 outubro 2019

octavio paz / vida pressentida



Relâmpagos ou peixes
na noite do mar
e pássaros, relâmpagos
na noite do bosque.

Os ossos são relâmpagos
na noite do corpo.
Oh mundo, tudo é noite
e a vida é relâmpago.



octavio paz
antologia poética
salamandra (1958-1961)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984


01 julho 2019

octavio paz / a ponte



Entre instante e instante,
entre eu sou e tu és,
a palavra ponte.

Entras em ti mesma
ao entrar nela:
como um anel
o mundo fecha-se.

De uma margem à outra
há sempre um corpo que se estende,
um arco-íris.

Eu dormirei sob os seus arcos.


octavio paz
antologia poética
salamandra (1958-1961)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984







22 maio 2019

octavio paz / dia



De que céu caído,
oh insólito,
imóvel solitário na onda do tempo?
És a duração,
o tempo que amadurece
num instante enorme, diáfano:
flecha no ar,
branco embelezado
e espaço já sem memória de flecha.
Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.

E flutuo, já sem mim, pura existência.



octavio paz
antologia poética
liberdade sob palavra (1935-1957)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984







05 julho 2016

octavio paz / madrugada



Rápidas mãos frias
retiram uma a uma
as vendas da sombra
Abro os olhos
                          Ainda
estou vivo
                    No centro
de uma ferida ainda fresca.


octavio paz
tradução de josé bento
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



25 maio 2015

octavio paz / amor e erotismo



POESIA


Aquilo que o poema nos mostra não o vemos com os nossos olhos de carne mas com os do espírito.

Os sentidos são e não são deste mundo.
Por eles, a poesia traça uma ponte entre o ver e o crer.
Por essa ponte a imaginação adquire corpo e os corpos tornam-se imagens.

A poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela mesma é já erotismo.

Religião e poesia vivem em contínua osmose.



EROTISMO

O erotismo é uma poética corporal e a poesia é uma erótica verbal.

O erotismo não é mera sexualidade animal: é cerimónia, representação, sexualidade transformada: metáfora.

Sexo, erotismo e amor são aspectos do mesmo fenómeno, manifestações daquilo a que chamamos vida.
O mais antigo dos três, o amplo e básico, é o sexo. O sexo é o centro e o fulcro desta geometria passional.

O erotismo é exclusivamente humano.

O erotismo é invenção, variação, incessante; o sexo é sempre o mesmo.

Dupla face do erotismo: fascinação diante da vida e diante da morte.

O erotismo é, antes de tudo e sobretudo, sede de ser outro. E o sobrenatural é radical e supremo ser-se outro.

O sentido religioso de um poema como o Cântico dos Cânticos não pode separar-se do seu sentido erótico profano:
são dois aspectos da mesma realidade. Nos místicos sufis é frequente a confluência da visão religiosa com a erótica.
A comunhão é comparada às vezes com um festim ente dois amantes no qual o vinho corre com abundância.
Ebriedade divina, êxtase erótico.


   
AMOR

A transgressão, o castigo e a redenção são elementos constitutivos da concepção ocidental do amor.

O amor é uma atracção para uma única pessoa: para um corpo e uma alma. O amor é escolha; o erotismo, aceitação.
Sem erotismo, não há amor, mas o amor atravessa o corpo desejado e busca a alma no corpo e, na alma, o corpo.
A pessoa inteira.

A ideia de encontro entre dois amantes exige dois condições contraditórias: predestinação e escolha.

O sexo é a raiz, o erotismo é o caule e o amor a flor.
E o fruto? Os frutos do amor são intangíveis. Este é um dos seus enigmas.

O amor é um nó no qual se atam, indissoluvelmente, o destino e a liberdade.

No amor aparece o mal: é uma sedução mórbida que nos atrai e nos vence.

Há muitos anos escrevi: o amor é um sacrifício sem virtude;
hoje eu diria: o amor é uma aposta, insensata, pela liberdade. Não a minha, a alheia.



octavio paz
a chama dupla: amor e erotismo
trad. josé bento
assírio & alvim
1995






11 março 2015

octavio paz / trabalhos do poeta


XII
Depois de ter cortado todos os braços que se esten-
diam para mim; depois de ter entaipado todas as ja-
nelas e todas as portas; depois  de ter inundado   os
fossos com água envenenada; depois de ter edifica-
do minha casa no rochedo dum Não inacessível aos
afagos  e ao  medo; depois de ter cortado  a  língua e
logo a devorar;  depois de  ter  lançado punhados  de
silêncio  e  monossílabos de desprezo a meus amo-
res; depois de ter esquecido meu nome e o nome da
minha  terra natal; depois de me ter julgado e conde-
nado  a  perpétua  espera  e a solidão perpétua, ouvi
contra as pedras de meu calabouço de silogismos a
investida húmida, terna, insistente, da primavera.



octavio paz
trabalhos do poeta