09 junho 2010
maria gabriela llansol / se eu fosse aquela em que tu
210
«Se eu fosse aquela em que tu
Pensas, a que tu tens amor», dizia
Insistente a canção, à luz daquele
Candeeiro da Belle Époque. Tinha
Oito anos e olhava para o garoto
Sobre o seu supedâneo. Estive para
Dizer «Eu sou aquela em quem tu
Pensas» e estive para não dizer. E se
Tivesse dito? Seria aquele semântico
Tu que sempre me diria. E se dito não
Tivesse? Meu Eu gramatical ficaria
Apenas meu, é certo… mas tão incerto.
maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003
05 junho 2010
samuel beckett / dieppe
ainda a maré vazia
o cascalho morto
meia volta e depois os passos
em direcção às antigas luzes
1937
samuel beckett
trad. manuel portela
“relâmpago” nr.13
10/2003
04 junho 2010
gil t. sousa / passados
19
não te esqueças de me visitar. traz-me as fotografias de Veneza e aquele poema que me escreveste quando o nosso amor ainda era o que de mais magnífico acontecera nas nossas vidas e no mundo.
havemos de nos sentar nas mesmas cadeiras como se fossem as mesmas manhãs de sábado. havemos de olhar os mesmos telhados, divagar sobre a eternidade dos gestos e jurar comovidamente que as nossas almas se tocaram de uma maneira única e inesquecível.
eu hei-de esconder-te a minha interminável solidão e tu hás-de demonstrar-me, muito inocentemente, nas tuas palavras tão cheias de vida e de juventude, como a morte nos descobre mesmo nos lugares mais altos.
gil t. sousa
falso lugar
2004
01 junho 2010
antónio josé forte / a torre de pisa
31 maio 2010
vasco ferreira campos / antes que o verão chegue
Antes que o verão chegue
e as longas tardes
se espalhem pelo coração
e te prendam ao desgaste habitual
toca uma palavra
para que permaneça
na minha boca
onde mais ninguém
possa ficar confundido.
Uma apenas.
E vê como pesa menos sobre o silêncio
a sombra que vais mover.
vasco ferreira campos
a voz à chuva
guimarães
pedra formosa
1996
30 maio 2010
vergílio ferreira / pensar o livro
132 Pensar o livro. Pensá-lo antes de mais como objecto na simples volúpia de o ter na mão. Na beleza do seu esquadriado, da sua apresentação, do volume, da gramagem. Na tessitura e tom das suas folhas, na possível cartonagem ou encadernação, no halo de mistério que o envolve. Perdeu-se o deleite de o desflorar, agora com as folhas cortadas a cutelo. O prazer de lhe revelar o oculto de si, agora que tudo é público e envidraçado e exposto na rua. Pensar o livro na sua intimidade connosco sem mais ninguém a assistir. Pensá-lo no silêncio de quatro paredes, no que só a nós nos diz. A leitura colectiva de outrora tinha também decerto o seu mistério mas que era outro. Como a comunidade de uma catedral ou a de um cinema. Há outras formas de se estar em comum como o comício político ou o jogo de futebol. Mas é esta uma comunidade exteriorizada, virada do avesso, em que se está com os outros justamente pelo lado animal. O uso do vídeo laicizou essa espécie de sagrado de uma sala de cinema. Mas é por isso que ao que dizem se está a voltar a essas salas. Nunca reparaste no estranho incómodo de ires ao cinema, quando ias, e haver pouca gente a assistir? O sagrado então degrada-se pela ausência de uma comunidade. Numa catedral deserta não o perdes porque está lá na luz dos vitrais, no eco dos teus passos ou de um rumor ausente pela cúpula das abóbadas. Mas no cinema vazio todo o mistério se desvanece na materialidade as cadeiras, das galerias. A imprensa, como o vídeo, pretendeu destruir a imposição da comunidade para afirmação do indivíduo. Mas se o vídeo destruiu tudo e deixou para si apenas a comodidade do sofá e de não sair à rua, o livro solitário fala-nos mais intensamente no secreto de nós. A cristandade numa catedral vive ou vivia o sagrado da oração numa presença totalizada de Deus. A relação a sós com a divindade que o protestantismo trouxe dissipou o que a transcendia na amplitude do sagrado. Algo se terá perdido da leitura colectiva na leitura individual? Mas é possível que a leitura em comum recolhesse da catedral a sacralização de se estar junto. Mas hoje a catedral já perdeu também esse sagrado. Está-se demasiado na rua para lá dentro se não estar. E é possível por isso que o sagrado se tenha transferido para a simples obra de arte, sobretudo para o seu santuário que é o museu. E é esse sagrado individualizado que talvez sintas no livro. Na sua revelação. Num certo receio de lhe desvendar o mistério. De te sentires um pouco violentado por ele ao ponto de o quereres, sem quereres, destruir, abrindo-o rasamente, aplanando-lhe as folhas que se encurvam, instrumentalizando-o com notas à margem e sublinhados, dobrando as folhas para 1he marcar o sítio em que o lês quando suspendes a leitura e o mais. Mas o mistério é mais forte e volta se o leres na intimidade de ti. E o destróis ou suspendes se o lês simplesmente numa praia ou num carro eléctrico. Mas então o que te interessa não é o seu mistério, mas simplesmente o que diz. Em todo o caso é mais viável para isso ler um simples policial ou um livro de anedotas.
Pensar o livro. E amá-lo desde a sua materialidade ao mistério da criação a que nele poderás assistir…
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001
27 maio 2010
luís veiga leitão / corredor
Cem metros à sombra – temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
Neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.
Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de pez.
E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.
E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha de railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes nos cais
E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança.
luís veiga leitão
surrealismo abjeccionismo
antologia organizada por mário cesariny
edições salamandra
1992
25 maio 2010
alexandre nave / o cheiro dos carniceiros a tatuar palavras
3
Os pés nos campos de algodão
calcinados de sangue, abertos
descidos os buracos ao corpo
caminhamos os campos desprovidos
abrimos poços nos ouvidos,
os olhos já queimados
furamos os dedos nos umbigos
um a um num cordão a enfiar,
nascemos uns nos outros
não sabemos quem nos vem queimar.
alexandre nave
columbários & sangradouros
quasi
2003
24 maio 2010
eva gerlach / erosão
Atrás da colina havia uma espécie de vale.
Eu estava deitada, escondida até
me encontrarem. Nas copas
dos carvalhos uma inclinação
esboçou-se, os pássaros
não gostaram e levantaram voo.
Azul, o vislumbre de um desenho
desordenadamente tecido sob as asas
abriu-se, passaram tão
baixo – por cima de mim houve
um que gritou encontrei-te.
eva gerlach
alguns poemas
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994
21 maio 2010
kiki dimoulá / anúncios
Oferece-se desespero
em excelente estado,
e espaçoso beco-sem-saída.
A preços vantajosos.
Vende-se terreno
baldio e fértil
por falta de sorte e disposição.
E tempo
totalmente por utilizar.
Informações: no beco.
Horário: sempre.
kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003
19 maio 2010
fiama hasse pais brandão / do amor IV
Esta vista de mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da Natureza pede
o amor em dois olhares.
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002
18 maio 2010
alejandra pizarnik / para lá de qualquer zona proibida
17 maio 2010
gil t. sousa / o tempo é uma armadilha
18/
o tempo é uma armadilha
na forma daqueles
que mais amamos.
gil t. sousa
falso lugar
2004
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