01 junho 2010

antónio josé forte / a torre de pisa














A torre de Pisa
em Itália
como qualquer torre
não fala


Inclina-se
para a frente
e cumprimenta
a gente


Não é como
a torre de Belém
que não cumprimenta
ninguém









antónio josé forte
uma rosa na tromba de um elefante
desenhos de aldina
parceria a. m. pereira
2001






31 maio 2010

vasco ferreira campos / antes que o verão chegue









Antes que o verão chegue
e as longas tardes
se espalhem pelo coração
e te prendam ao desgaste habitual
toca uma palavra
para que permaneça
na minha boca
onde mais ninguém
possa ficar confundido.
Uma apenas.

E vê como pesa menos sobre o silêncio
a sombra que vais mover.








vasco ferreira campos
a voz à chuva
guimarães
pedra formosa
1996


30 maio 2010

vergílio ferreira / pensar o livro





132 Pensar o livro. Pensá-lo antes de mais como objecto na simples volúpia de o ter na mão. Na beleza do seu esquadriado, da sua apresentação, do volume, da gramagem. Na tessitura e tom das suas folhas, na possível cartonagem ou encadernação, no halo de mistério que o envolve. Perdeu-se o deleite de o desflorar, agora com as folhas cortadas a cutelo. O prazer de lhe revelar o oculto de si, agora que tudo é público e envidraçado e exposto na rua. Pensar o livro na sua intimidade connosco sem mais ninguém a assistir. Pensá-lo no silêncio de quatro paredes, no que só a nós nos diz. A leitura colectiva de outrora tinha também decerto o seu mistério mas que era outro. Como a comunidade de uma catedral ou a de um cinema. Há outras formas de se estar em comum como o comício político ou o jogo de futebol. Mas é esta uma comunidade exteriorizada, virada do avesso, em que se está com os outros justamente pelo lado animal. O uso do vídeo laicizou essa espécie de sagrado de uma sala de cinema. Mas é por isso que ao que dizem se está a voltar a essas salas. Nunca reparaste no estranho incómodo de ires ao cinema, quando ias, e haver pouca gente a assistir? O sagrado então degrada-se pela ausência de uma comunidade. Numa catedral deserta não o perdes porque está lá na luz dos vitrais, no eco dos teus passos ou de um rumor ausente pela cúpula das abóbadas. Mas no cinema vazio todo o mistério se desvanece na materialidade as cadeiras, das galerias. A imprensa, como o vídeo, pretendeu destruir a imposição da comunidade para afirmação do indivíduo. Mas se o vídeo destruiu tudo e deixou para si apenas a comodidade do sofá e de não sair à rua, o livro solitário fala-nos mais intensamente no secreto de nós. A cristandade numa catedral vive ou vivia o sagrado da oração numa presença totalizada de Deus. A relação a sós com a divindade que o protestantismo trouxe dissipou o que a transcendia na amplitude do sagrado. Algo se terá perdido da leitura colectiva na leitura individual? Mas é possível que a leitura em comum recolhesse da catedral a sacralização de se estar junto. Mas hoje a catedral já perdeu também esse sagrado. Está-se demasiado na rua para lá dentro se não estar. E é possível por isso que o sagrado se tenha transferido para a simples obra de arte, sobretudo para o seu santuário que é o museu. E é esse sagrado individualizado que talvez sintas no livro. Na sua revelação. Num certo receio de lhe desvendar o mistério. De te sentires um pouco violentado por ele ao ponto de o quereres, sem quereres, destruir, abrindo-o rasamente, aplanando-lhe as folhas que se encurvam, instrumentalizando-o com notas à margem e sublinhados, dobrando as folhas para 1he marcar o sítio em que o lês quando suspendes a leitura e o mais. Mas o mistério é mais forte e volta se o leres na intimidade de ti. E o destróis ou suspendes se o lês simplesmente numa praia ou num carro eléctrico. Mas então o que te interessa não é o seu mistério, mas simplesmente o que diz. Em todo o caso é mais viável para isso ler um simples policial ou um livro de anedotas.
Pensar o livro. E amá-lo desde a sua materialidade ao mistério da criação a que nele poderás assistir…








vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001






27 maio 2010

luís veiga leitão / corredor









Cem metros à sombra – temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
Neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.

Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de pez.

E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.

E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha de railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes nos cais

E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança.








luís veiga leitão
surrealismo abjeccionismo
antologia organizada por mário cesariny
edições salamandra
1992








25 maio 2010

alexandre nave / o cheiro dos carniceiros a tatuar palavras







3



Os pés nos campos de algodão

calcinados de sangue, abertos
descidos os buracos ao corpo

caminhamos os campos desprovidos
abrimos poços nos ouvidos,

os olhos já queimados
furamos os dedos nos umbigos
um a um num cordão a enfiar,

nascemos uns nos outros

não sabemos quem nos vem queimar.








alexandre nave
columbários & sangradouros
quasi
2003






24 maio 2010

eva gerlach / erosão








Atrás da colina havia uma espécie de vale.
Eu estava deitada, escondida até
me encontrarem. Nas copas
dos carvalhos uma inclinação
esboçou-se, os pássaros
não gostaram e levantaram voo.
Azul, o vislumbre de um desenho
desordenadamente tecido sob as asas
abriu-se, passaram tão
baixo – por cima de mim houve
um que gritou encontrei-te.








eva gerlach
alguns poemas
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994








21 maio 2010

kiki dimoulá / anúncios






Oferece-se desespero
em excelente estado,
e espaçoso beco-sem-saída.
A preços vantajosos.


Vende-se terreno
baldio e fértil
por falta de sorte e disposição.


E tempo
totalmente por utilizar.

Informações: no beco.
Horário: sempre.









kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003







19 maio 2010

fiama hasse pais brandão / do amor IV





Esta vista de mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da Natureza pede
o amor em dois olhares.






fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





18 maio 2010

alejandra pizarnik / para lá de qualquer zona proibida










para lá de qualquer zona proibida
há um espelho para a nossa triste transparência






alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
correio dos navios
2002





17 maio 2010

gil t. sousa / o tempo é uma armadilha






18/


o tempo é uma armadilha
na forma daqueles

que mais amamos.












gil t. sousa
falso lugar
2004







16 maio 2010

josé miguel silva / contra os optimistas














Chamam destino ao rifão do acaso
e chamam à fraude boa fortuna.
Crêem no Batman e na Virgem Maria.
Duvidam do frio, não da polícia
e nunca dão crédito àquilo que vêem.

Reservam a tempo um lugar na geral,
põem o pé entre duas ciladas
e ficam a rir-se nas fotografias.
Sujam a roupa tal como nós, mas
mandam-na sempre a lavandarias
que sabem tratar dos casos difíceis.

Nunca dão ponto sem antes o nó,
mas fazem um laço por cima do nó.
Compram revistas de aval científico
em cujos artigos se prova o seguinte:
é quase impossível determinar
se é falsa uma lágrima ou se é verdadeira.

Depois, jantam em grupo, falam dinheiro,
guiam a vida por grandes veredas e ouvem
sininhos, muitos sininhos de música sacra.







josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
& etc
2002



12 maio 2010

leopoldo maria panero / quem andou na sombra







Quem andou na sombra, como o vento
descalço como se não andasse
como se sob a noite andasse
contente com as estrelas
silencioso como o milagre
de existir ainda, em frente das estrelas
e contra o milagre do ar.







leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001






10 maio 2010

rené char / folhas de hipno 16










O entendimento com o anjo, nossa primordial preocupação.

(Anjo, o que, no interior do homem, se mantém à margem do compromisso religioso, a palavra do mais alto silêncio, a significação de valor incalculável. Afinador de pulmões que doura os cachos vitaminados do impossível. Conhece o sangue, ignora o celeste. Anjo: a vela que se debruça a norte do coração.)






rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000