01 agosto 2025

p. feijó / quem me dera poder dizer tudo isto



 

Quem me dera poder dizer tudo isto. Quem me dera poder gritá-lo sem hesitação, sem nenhuma inquietação. Quem me dera poder dizer «vós», «vosso», «vocês», e ter na mão a certeza dos contornos da minha oposição, dos meus adversários. Quem me dera poder fazer tudo isto.
 
Mas à noite, quando as costas se derramam nos lençóis e o corpo se faz horizontal, o primeiro expirar dos olhos sabe de imediato que de novo navego miragens. A minha raiva não quebra nenhuma jaula. O meu grito faz parte do vosso repertório, e o meu azedume, do cardápio. O ressentimento prende-me a uma economia amestrada. Como não há um «nós», não há um «vós». Sou também a minha própria abjecção, sou também o presságio do meu próprio fim. Nunca deixei completamente de vos ver.
 
Mas talvez seja essa a minha, a «nossa», maior arma.
 
Se não posso deixar de vos ser, a razão por que vos sou abjecta e abominável é que vocês também nunca deixaram de me ser a mim. O difícil não é ser demasiado parecida. E aí entra não a minha, mas a vossa imaginação: vocês re-conhecem-se em mim.
 
 
 
p. feijó
episódios de fantasia & violência
orfeu negro
2024