Quem me dera poder dizer tudo isto. Quem me dera poder gritá-lo sem
hesitação, sem nenhuma inquietação. Quem me dera poder dizer «vós», «vosso»,
«vocês», e ter na mão a certeza dos contornos da minha oposição, dos meus
adversários. Quem me dera poder fazer tudo isto.
Mas à noite, quando as costas se derramam nos lençóis e o corpo se faz
horizontal, o primeiro expirar dos olhos sabe de imediato que de novo navego
miragens. A minha raiva não quebra nenhuma jaula. O meu grito faz parte do
vosso repertório, e o meu azedume, do cardápio. O ressentimento prende-me a uma
economia amestrada. Como não há um «nós», não há um «vós». Sou também a minha
própria abjecção, sou também o presságio do meu próprio fim. Nunca deixei
completamente de vos ver.
Mas talvez seja essa a minha, a «nossa», maior arma.
Se não posso deixar de vos ser, a razão por que vos sou abjecta e
abominável é que vocês também nunca deixaram de me ser a mim. O difícil não é
ser demasiado parecida. E aí entra não a minha, mas a vossa imaginação: vocês
re-conhecem-se em mim.
p. feijó
episódios de fantasia & violência
orfeu negro
2024
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