L. do D.
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos
violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento
que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da
alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa: uma impaciência
da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre
crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo
sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as
entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o
escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a
noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei.
Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo
aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras
fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a
inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não
recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses
que não estão pegados.
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982