28 fevereiro 2025

primo levi / aportar

 



 

 

Feliz o homem que chega a bom porto,
Que deixa atrás de si mares e tempestades,
Cujos sonhos estão mortos ou jamais nascidos;
E que se senta e bebe na taberna de Bremen,
Junto da lareira com uma paz serena.
Feliz o homem que é como uma chama extinta,
Feliz o homem que é como a areia do estuário,
que depôs o seu fardo e limpou a testa
e descansa no bordo do caminho.
Não teme, nem deseja, nem espera,
mas olha fixamente o sol que se põe.

 
                                        10 de Setembro, 1964
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 

 



27 fevereiro 2025

zbigniew herbert / os peixes

 
 
 
Impossível imaginar o sono dos peixes. nem mesmo no canto mais escuro do lago, entre os juncos, o seu descanso é uma vigília: a mesma posição dura uma eternidade; é absolutamente impossível dizer deles: pousaram a cabeça.
 
De igual modo, as suas lágrimas são como um grito no vazio – incalculáveis.
 
Os peixes não são capazes de gesticular o seu desespero. Isso justifica a faca romba que salta pelo dorso arrancando lantejoulas de escamas.
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024




 

26 fevereiro 2025

mar becker / caderno dos fins



 

 
outros amaram em mim a mulher
 
a ti peço para amar
a sombra
 
ama-me os fios de cabelo que caem
o farelo à ponta dos dedos
a poeira das unhas recém-lixadas
 
ama na minha boca a palavra que nunca é dita
 
ama os meus livros aquele que achei num sebo
e que decidi comprar só pela dedicatória
datada de junho de 1732
 
ver a caligrafia de um morto desejando boa leitura
a outro morto
duas mãos se encontrando assim, cobertas
de esquecimento e pó
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021





 

25 fevereiro 2025

alejandra pizarnik / gestos para um objecto

 
 
               
Em tempo adormecido, um tempo como uma luva sobre um tambor.
 
Os três que em mim contendem ficámos no móvel ponto fixo e não somos nem um é nem um estou.
 
Antigamente os meus olhos procuraram refúgio nas coisas humilhadas, desamparadas, mas em amizade com os meus olhos eu vi, vi e não aprovei.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
el infierno musical (1971)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020


 

24 fevereiro 2025

amalia bautista / um tempo feliz

 


 
 
Era um tempo feliz. Naquele tempo
sustentavam-me as pernas o andaime
que sustentava e encerrava o mundo.
Não houve ninguém mais simples naquele tempo,
ninguém mais inocente do que eu mesma.
Não houve nenhum sinal que me falasse
da dor, da ansiedade e do desastre.
 
 
 
amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013




23 fevereiro 2025

eunice de souza / temporários

 
 
 
Casas temporárias para os vivos
Temporária a tenda para o casamento
Temporário o transporte
para a última viagem
Temporário o chão
que pisamos.
 
 
 
eunice de souza
coração de abacate
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2018





 

22 fevereiro 2025

antonia pozzi / reflexos

 
 
Palavras – vidros
que infielmente
reflectis o meu céu –
 
pensei em vós
ao anoitecer
numa rua sombria
quando sobre as pedras da calçada caiu uma vidraça
e durante muito tempo os estilhaços
espalharam luz pela terra –
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 



21 fevereiro 2025

herberto helder / a água nas torneiras, nos diamantes, nos copos




 

 
A água nas torneiras, nos diamantes, nos copos.
E entre inocência e inteligência estudava-se a arte.
Exemplo: a arte do ar queimado que passa pela boca
se a mão de alguém entra por mim dentro
e revolve
canos grossos, artérias, intestinos,
o sangue.
Deus, mão entrada.
A voz encurva-me todo.
Nos fulcros, à mesa, pelo fogo, onde as linhas se encontram nos grandes
objectos do mundo, sento-me,
e alimento-me, e a fruta adoça-se até ao oculto,
e eu sei tudo, e esqueço.
Quis Deus que eu entenebrecesse.
Que se fizesse em mim a abertura por onde saem
madeiras frias, ferros
para os talheres,
carne,
e jarras que trepidam com a força das corolas,
diamantes por onde se bebe.
Deus disse: um idioma que brilhe.
E eu trabalho para este espeço em que ponho a mão a peso
de sangue, o dom
de exercer os instrumentos terrestres.
Se vibram os arcos da respiração,
Se a baforada encrespa o ar quente das linhas.
 
 
 
herberto helder
a faca não corta o fogo
assírio & alvim
2008



 

20 fevereiro 2025

mahmud darwish / só me resta

 
 
 
só me resta
perder-me pela tua sombra, que é a minha.
só me resta
habitar a tua voz, que é a minha.
 
afastei-me da cruz estendida
como claridade em horizonte que não se inclina
até ao mais minúsculo monte que a vista alcança
mas não achei minha ferida, minha liberdade.
 
porque não sei onde moras
não encontro o caminho,
e porque meu dorso não se apoia em ti com pregos
inclinei-me tanto
como teus céus fazem
a quem espreita de escotilhas de avião
 
devolve-me os pedaços do meu nome
para que possa convocar as fibras das árvores
devolve-me as letras do meu rosto
para que possa chamar as tempestades próximas
devolve-me aas razões do meu prazer
para que possa invocar esse regresso sem razão
 
porque a minha voz está seca como pau de bandeira
e a minha mão vazia como o hino nacional
porque a minha sombra é ampla como se fora uma festa
e os traços do meu rosto se passeiam de ambulância,
porque eu não sou mais que isto:
o cidadão de um reino que não nasceu ainda.
 
 
 
mahmud darwish
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução adalberto alves
assírio & alvim
2001




19 fevereiro 2025

alain morin / 13 de junho…

 
 
 
     Procuro como um requinte o ângulo na beleza. Que nenhum dos livros empilhados saia da esquadria. Concebo assim uma arquitectura sensorial para o que tenta ser torre no acanhado espaço onde resido. Uma pilha de livros é um templo onde venero um deus indelével, informulado, hermeticamente fechado. Abrir um deles constitui um esforço sagrado que pode afectar todo o edifício. Às vezes, deslocando cuidadosamente os livros através da pilha, procuro casar determinado título com outro, para ver que consequências essa união mágica produz. Outras, é da colisão entre dois autores que, através da fermentação da sombra, espero conseguir um álcool celeste.
 
 
alain morin
trad. luís miguel nava
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990
 




18 fevereiro 2025

antónio barahona / legenda para uma fotografia do autor

 
 
 
legenda para uma fotografia do autor com Hernâni Taveira no jardim constantino em 1959
 
 
Passaram alguns anos:
uns suicidaram-se outros não têm o braço esquerdo
as mil e uma noites surrealistas
já foram escritas
hoje uma elegia amanhã o amor louco
para o ano uma viagem religiosa
ao lugar do crime
 
éramos nós
tu o amigo dos óculos chineses
do gato voador no vidro
dos cavalos azuis a emergir dum espelho
eu de semblante vítreo taciturno
olhando a morte que te escolheu primeiro
 
 
1970
 
 
 
antónio barahona 
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012
 




 

17 fevereiro 2025

manuel de freitas / such a sad machine





 

 
                    no Estádio, com o Diogo Vaz Pinto
 
 
                         
Talvez hoje, de certa maneira,
tenha percebido. Há uma idade
em que acreditamos na poesia,
em que julgamos (coitados
de nós) a única saída possível.
 
Tocar na capa de um livro ou
numa «suffering jukebox»
torna-se quase a mesma coisa.
O mundo pede-nos desespero
– e nós tentamos dar-lho.
 
Há uma idade, um desencontro,
um fim sem recomeço que teima
em nomear mortos impartilháveis,
versos longos que celebram o luto
de haver versos, de haver morte.
 
Mas já não é a idade certa, aquela
em que tolerávamos poetas
e poemas que cresceram ao contrário,
por nos ser mais próximo o final da noite,
essa morte retórica que nos embebedava tanto.
 
Não sabíamos, mas acreditávamos
– na poesia ou noutra merda qualquer
que não viesse sujar o azul das mesas,
esta cor baça que persiste e que
fomos, de comum acordo, dissipando.
 
Uma idade em que nos apetecia ainda
falar de idade, sem futuro nem constrangimentos.
(Deixa-me ao menos pagar-te a cerveja.
Começou a chover. É demasiado tarde
para quem nunca esteve aqui
 
e espera, sentado, que lhe digam que morreu.)
 
 
 
manuel de freitas
telhados de vidro/12
averno
2009






 

16 fevereiro 2025

fernando luís / num café de Bolonha

 
 
6

Desta névoa em cerco
crescem rosas para ti,
o nublado anil das quimeras,
riscos de um destino dilacerado.
 
A paz das águas sobre
o mundo reacende o torpor
de deus encarcerado, a memória
do estrangeiro deposto sob
a tua vida, sobressalto do sangue,
do inquieto, imortal e solitário
sopro a que chamas alma.
 
E com uma pedra engastada
em cada gesto vais
matar o chacal dos teus sonhos,
dessa névoa em cerco imaginada.
 
 
 
fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





15 fevereiro 2025

regina guimarães / catalogue raisonné

 
 
 
Havia essas manhãs imaginárias
em que o sol passava debaixo da porta
como uma carta breve, um magro recado,
e essas outras
históricas
em que o sol arrombava a porta
sem historiador.
 
Saíamos mais cedo do que o costume
para confiar a palavra a um transeunte
embrulhada num pano muito branco.
 
E o primeiro com quem dávamos de cara
era mendigo e tão pedinte
que a nossa espinha se curvava
em jeito de amor envergonhado
porque outro sentimento não nos ocorria.
 
Corríamos contra o tempo.
Pela rua fora
aos encontrões
furávamos caminho por entre a multidão mole
e o ar duríssimo.
 
O que fazíamos pelas más razões
voltaríamos a fazer
a cometer
cada vez mais gratuitamente.
Sempre em nunca
ávidos de nunca
sem sempre.
 
 
 
regina guimarães
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015
 



14 fevereiro 2025

carlos saraiva pinto / farás do sono o abrigo

 
 
 
farás do sono o abrigo
dos anjos lentos.
 
a visão melancólica
dos rios obstinados.
 
ao menos uma vez
 
como a dimensão
dos pequenos passos
a caminho das mãos dissolvidas.
 
o rosto é meigo.
 
o lugar diante dos peixes
espalhará a neblina
tocada em mel a indiferença
que povoou de ausência
as libélulas interiores.
 
ó saliva inconsolável dos deuses.
no lado esquerdo do peito
o musgo dispersivo cobre o tempo
subtis pormenores
de gestos que escapam.
 
a minha memória parou.
o sofrimento vigia os mares
e na película dos amieiros
a noite cai árida e grave.
 
só o viajante da noite
contempla o mármore da face.
ouve a densa página das dunas,
 
os órfãos iluminados da chuva,
nas pegadas solitárias do outono
sobre os abismos do oeste.
 
descerás assim despido de luz
à verdura da terra
 
e a extensa morte
cobrirá de lama e sulcos
o teu reino.
 
 
 
carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001
 




13 fevereiro 2025

jorge velhote / fria é a água na escuridão

 
 
 
.3.
 
Regressas um pouco ao teu corpo como
 
o crepúsculo cai nas sombras.
 
És uma erva seca ou uma cana
 
esquecida. E na tua boca restam
 
silvas e poeira. E búzios.
 
Depois, estendes o olhar como quem
 
abandona o território das palavras
 
as serpentes em suas mãos
 
ou os lugares vazios em cada manhã.
 
 
 
jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018





 

12 fevereiro 2025

nuno júdice / retrato

 
 
 
Encosta-se à parede. A brancura
das pernas contra o negro da sombra. O
risco da meia no risco do papel; e
os dedos que furam a pele. Os olhos
fechados no excesso da luz. Entreabre
os braços, deixando que os seios
saltem para o sol. O rigor do vento
abranda nessa imagem.
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024
 



11 fevereiro 2025

gastão cruz / frio

 
 
 
Linguagem das estrelas incendeia
o céu da noite! Do
lugar vazio
choverão cinzas e da negra teia
 
descerá o cenário como um dia
para cegos que escutam a sombria
melodia do frio
o inimigo rio a escuridão
 
diurna da melancolia
As trevas serão teias recolhendo
os mortos Passará
 
nelas o pensamento
das estrelas extintas, o sentido
da vida
 
 
 
gastão cruz
as pedras negras
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




10 fevereiro 2025

pedro tamen / minha secura agulha pela noite

 
 
 
Minha secura agulha pela noite
luminosa atravessa a estrada, o escuro,
procura-te na casa e na cadeira,
procura-te no meio
das ilusões, sentenças, lodo, esperas,
encontra-te no quente à minha volta,
reencontra o teu corpo, minha auréola,
a paz de ter morrido e de viver:
 
os teus olhos abertos juntos aos meus,
tuas mãos passeantes, teu cabelo
suado no esforço de me dares
orografias de serras e de mares,
teu lume, tua água, teu novelo,
a tua voz mais baixa que o meu braço,
nosso ar, nossa meta, sol, cansaço.
 
 
 
pedro tamen
escrito de memória
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995



 

09 fevereiro 2025

joaquim pessoa / alcácer que vier

 
 
 
Em Alcácer eram verdes
as aves do pensamento.
Eram tão leves tão leves
como as lanternas do vento.
 
Em Alcácer eram verdes
os cavalos encarnados.
Eram tão fortes tão negros
como os punhos decepados.
 
Em Alcácer eram verdes
as armas que eu inventei.
Eram tão leves tão leves
tão leves que nem eu sei.
 
Em Alcácer eram verdes
os homens que não voltaram.
Eram tão verdes tão verdes
como os campos que deixaram.
 
Em Alcácer eram verdes
as maçãs feitas de lume.
Eram tão frias tão frias
como as dobras do ciúme.
 
Em Alcácer eram verdes
estas palavras que agora
são tão caladas tão cernes
tão feitas desta demora.
 
Em Alcácer eram verdes
as flores da sepultura.
Eram tão verdes tão verdes
tão verdes como a loucura.
 
Em Alcácer era verde
meu amor o teu olhar.
Era tão verde tão verde
quase à beira de cegar.
 
 
Em Alcácer eram verdes
os lençóis onde morri.
Eram tão frios tão verdes
como os campos que eu não vi.
 
Em Alcácer eram verdes
as feridas do meu país.
Eram tão fundas tão verdes
como este mal de raiz.
 
 
 
joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982





08 fevereiro 2025

aram saroyan / a moer café

 
 
 
Moer café era o meu passatempo favorito
Quando tinha três ou quatro anos. Costumava sentar-me
No chão da cozinha com o moinho de café
Entre os meus joelhos, moendo e verificando
 
de vez em quando quanto já tinha na gaveta
Em baixo onde o café moído caía.
Quando tinha acabado e a gaveta estava cheia,
Alisava-o com o meu dedo, satisfeito.
 
 
 
aram saroyan
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020




07 fevereiro 2025

jorge luís borges / um livro



 
Apenas uma coisa entre outras coisas
Mas também uma arma. Foi forjada
Na Inglaterra, em 1604,
E carregada com um sonho. Encerra
O som, a fúria, a noite e o escarlate.
A minha mão sopesa-a. Quem diria
Que contém o inferno: essas barbudas
Bruxas que são as parcas, os punhais
Que executam as duras leis da sombra,
O delicado ar desse castelo
Que te verá morrer, a delicada
Mão que é capaz de ensanguentar os mares,
O clamor e a espada da batalha.
 
Este tumulto silencioso dorme
No espaço de um só livro, na tranquila
Prateleira da estante. Dorme e espera.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



 

06 fevereiro 2025

paul éluard / identidades

 
 
 
                                                a Dora Maar

 
 
Vejo os campos e o mar cobertos por um dia igual
Não há diferenças
Entre a areia que dormita
O machado à beira da ferida
O corpo em feixe desatado
E o vulcão da saúde
 
Vejo mortal e boa
O orgulho que retira o seu machado
E o corpo que respira a plenos desdéns sua glória
Vejo mortal e desolada
A areia que volta ao leito de partida
E a saúde que tem sono
O vulcão palpitante como um coração desvendado
E as barcas respigadas pelos ávidos pássaros
As festas sem reflexos as dores sem eco
Frontes olhos atormentados pelas sombras
Risos como encruzilhadas
Os campos o mar o tédio torres silenciosas torres
                                                          [sem fim
Vejo leio esqueço
O livro aberto das minhas janelas fechadas
 
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




05 fevereiro 2025

paul bowles / canção

 
 
 
Sereis escravos num castelo.
Para cada beijo haverá um esgar.
Para cada garrafa haverá um discípulo.
Somos livres e podemos subir às montanhas.
Mas para cada passaporte há uma entrada
E para cada cálice uma gota.
Os relevos dos antigos mosaicos perseguiam-nos
E para cada fragmento havia um soluço
E para cada punhalada um silêncio.
A nossa liberdade era uma prisão,
Mas para cada riso havia uma carícia;
Para o amor havia um sorriso.
 
                                                           1929
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008




04 fevereiro 2025

paul auster / desenterrar

 
 
II
 
Manguais, a brancura, as flores
da terra prometida: tudo
vais arrebanhando, esboroando-te no limiar
da respiração. Por uma palavra apenas
no ar deixámos de respirar, por uma
pedra, fendendo-se com a fome
dentro de nós-fúria,
desde a desordem dos ossos, aparentando-nos
ao verme. Tua única
testemunha é a parede. Apartada
de mim, mas nada desperdiçando,
espalhas-te sobre cada página em branco,
como se a tua voz tivesse rastejado
para fora de ti: e entrado
na brancura do pranto.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 



03 fevereiro 2025

jack gilbert / talvez ninguém deva ser aberto

 
 
Sabes, eu levo a sério as baleias.
O seu vasto movimento através da escuridão,
mudo.
É insuportável.
Ou Crivelli, com a sua fruta.
Os japoneses.
Ou o miolo branco dos melões,
sempre na escuridão.
Essa escuridão inviolada desde o início.
O pequeno vazio no centro,
na escuridão.
Como virgens.
A paisagem às escuras.
Iluminada por mim.
Iluminada como as minhas mãos
na câmera-escura
prendendo a fita na bobina
na escuridão absoluta.
O árduo trabalho
e logo as minhas mãos enormes e brilhantes.
Virgens.
Baleias.
Escuridão e Laudes.
Mas talvez ninguém deva ser aberto.
Os veados voltam ao comedouro
na súbita época de caça.
As raparigas encontram segundos amores.
Sémele foi fulminada
enquanto olhava a baleia
mesmo na sua pior panóplia.
Foi o notável Sócrates a arruinar Atenas.
Agora enlouqueceste
e eu fugi.
Não são os sonhos.
É este teu amor
que cresce em mim,
maligno.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020




02 fevereiro 2025

ricardo reis / manhã que raias sem olhar a mim,

 
 
 
Manhã que raias sem olhar a mim,
Sol que luzes sem querer saber de eu ver-te,
        É para mim que sois
        Reais e verdadeiros;
Porque é na oposição ao que eu desejo
Que sinto real a natureza e a vida.
        No que me nega sinto
        Que existe e eu sou pequeno.
E nesta consciência torno a grande
Como a onda, que as tormentas atiraram
        Ao alto ar, regressa
Pesada a um mar mais fundo.
 
23-11-1918
 
 
fernando pessoa
poemas de ricardo reis
imprensa nacional-casa da moeda
1994




01 fevereiro 2025

bernardo soares / e assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos...

 
 
 
L. do D.
 
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa: uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados.
 
s.d.
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982