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09 fevereiro 2025

joaquim pessoa / alcácer que vier

 
 
 
Em Alcácer eram verdes
as aves do pensamento.
Eram tão leves tão leves
como as lanternas do vento.
 
Em Alcácer eram verdes
os cavalos encarnados.
Eram tão fortes tão negros
como os punhos decepados.
 
Em Alcácer eram verdes
as armas que eu inventei.
Eram tão leves tão leves
tão leves que nem eu sei.
 
Em Alcácer eram verdes
os homens que não voltaram.
Eram tão verdes tão verdes
como os campos que deixaram.
 
Em Alcácer eram verdes
as maçãs feitas de lume.
Eram tão frias tão frias
como as dobras do ciúme.
 
Em Alcácer eram verdes
estas palavras que agora
são tão caladas tão cernes
tão feitas desta demora.
 
Em Alcácer eram verdes
as flores da sepultura.
Eram tão verdes tão verdes
tão verdes como a loucura.
 
Em Alcácer era verde
meu amor o teu olhar.
Era tão verde tão verde
quase à beira de cegar.
 
 
Em Alcácer eram verdes
os lençóis onde morri.
Eram tão frios tão verdes
como os campos que eu não vi.
 
Em Alcácer eram verdes
as feridas do meu país.
Eram tão fundas tão verdes
como este mal de raiz.
 
 
 
joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982





01 agosto 2024

joaquim pessoa / canção de estar tão vivo

 


 

 

Tivera eu morrido trespassado
e menos me custara do que estar
de pé. E de tão vivo, assassinado.
Que a morte é ter vontade de cantar.
 
Tivera eu partido e não voltasse
às margens quase puras do meu Tejo.
Tivesse eu uma rosa e caminhasse.
Que a morte é dar a vida por um beijo.
 
Pudera eu dizer, amor, de nós
a ternura cobrindo a nossa cama.
Gritar por ti até perder a voz.
Que a morte está mais perto de quem ama.
 
Pudera então ao menos ficar mudo
e nada mais dizer. Nada cantar.
Como se já tivera eu cantado tudo
e a morte acontecesse devagar.
 
 
 
joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982






21 outubro 2009

joaquim pessoa / balada das onze e meia







Onze e meia: meia hora
para acabar este dia.
Meia hora ainda é hoje.
Meia hora é amanhã.

Às onze e meia da noite
vai haver muita pancada
num bar da rua das Pretas.

Vai haver muita mudança
nos decretos aprovados.

Às Onze e meia da noite
no quarto não se ouve nada
mas no berço uma criança
dorme o sono dos poetas
que andam subalimentados.

Às onze e meia da noite
direi vinte e três e trinta.

Acordo o galo vermelho
com dois murros no pescoço.

Canta, canta, meu pelintra
o dia de hoje é tão velho
que amanhã já estamos mortos.

Às onze e meia da noite
os Ódios nunca estão fartos.

Às onze e meia da noite
a morte anda lá por fora
a pedir contas à vida
e os polícias têm medo
da própria sombra que pisam.

Onze e meia. Está na hora.

No relógio ainda é cedo.

Os ponteiros não deslizam.

Às onze horas e meia
esperamos por amanhã.
Chega a noite para a ceia
com dois pezinhos de lã.

Passam gatunos, canalhas
com seus múltiplos perfis.

Caem corpos e navalhas
no silêncio dos lancis.

Onze e meia. A meia hora
que falta, nunca mais passa.

Não passa. Nunca mais passa.
Eu sei lá quanta desgraça
se apodera em meia hora
das ruelas e dos becos
que apodrecem na cidade!

São onze e meia. É agora
que os olhos verdes dos cegos
pressentem a claridade.

Às onze e meia da noite
o vento não bate à porta
nem quer saber de mais nada.
Às onze e meia da noite
no bar da rua das Pretas
continua a haver pancada.

Às onze e meia da noite
os cães disputam a dente
uma cadela aluada.

Às onze e meia da noite
há travestis no Rossio
à pesca dos marinheiros
que deixaram o navio
e fazem ondas de cio
no sangue dos paneleiros.

Bateram as onze e meia.

Só faltam trinta minutos.

Acende-se a lua cheia
na rua dos Sapateiros.

São onze e meia da noite
e eu quero ficar contigo
entre lençóis de algodão.

Fincar no flanco uma espora.

Cavalgar por meia hora.

Dar rédeas ao coração.

Às onze e meia da noite
é tempo de solidão.

E nas entranhas do medo
fazem-se filhos diversos.
Como um padeiro faz versos
ou um poeta faz pão.

Às onze e meia da noite.

Às onze e meia da noite
recebem-se embaixadores
e à mesma hora os porteiros
afugentam os trapeiros
vestidos de malfeitores.

Às onze e meia da noite
a Primavera passou-se
para o lado do Outono.
E uma Maria qualquer
nas alamedas do sono
cansada de ser mulher
às onze e meia matou-se.

Em ponto. São onze e meia.

Esta noite os redimidos
hão-de fazer por esquecer.

Bem comidos e bebidos
não tardam a adormecer.

E um frasco de comprimidos
na mesa de cabeceira
vai ajudar os sentidos
a cozer a bebedeira.

Às onze e meia da noite.

Às onze e meia da noite
num gabinete privado
(como a irmã cotovia)
o tipo que está ao lado
cantou tudo o que sabia
para subir de ordenado.

Às onze e meia da noite
rastejam cobras na lama
onde afocinham as putas
Senhoras Donas da Cama.
Mas as putas que são putas.
Não as que têm a fama.

São onze e meia da noite.

Já só falta meia hora.

Apenas trinta minutos.

Às onze e meia da noite
ponho a tristeza de lado
e uma gravata de seda.

Quero ouvir cantar o fado.

Quero dar uma facada
no galo da consciência.

Quero menos paciência
e um pouco mais de loucura.

E enquanto são onze e meia
ainda dura a pancada
no bar da rua das pretas
os putos fazem punhetas
em jeito de habilidade
apenas com quatro dedos.
E descobrem os segredos
de nascerem portugueses
filhos de um povo adiado.

Feitos aqui e agora.

Quando falta meia hora
para acabar o passado.









joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982