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14 setembro 2024

wladimir vaz mourão / galo branco

 



 

 
existia,
depois do mar,
das cidades poluídas e dos morros verdes,
um homem que me disse que não morreria.
 
lembro,
através das lembranças
que não são feitas de dias e anos,
mas de constelações,
desse homem
com um boné manchado de suor
e os olhos pequenos atrás dos óculos de sol.
ele me falava de nomes raros,
do prazer de beber a cachaça envelhecida
e dos desenhos que fazia –
gostei da cachaça, todavia não dos traços.
 
hoje,
aqui onde o negro e o branco
só se mesclam no céu –
recebo a notícia que
o corpo desse homem
aduba as canas-de-açúcar.
 
 
(para e., amigo que desenhou o rótulo da cachaça galo branco)
 
 
 
wladimir vaz mourão
para quem está se afogando, crocodilo é tronco
urutau
2023
 



12 janeiro 2023

mar becker / à pouca voz

 
 
estou recolhida há semanas. crisálida, noviciada. sinto que agora
posso cantar a vida das coisas inorgânicas, de longa duração. o
sono das pedras, intacto; as árvores retorcidas
 
posso ver que o centro do fogo é intransponível. estagiar em
todos os corpos minha expatriação. posso menstruar
um sangue claro
 
sonhar também – com o instante em que eu e o mar ainda
éramos um mesmo projeto: o ir e o vir, o inspirar e o expirar, os
batimentos, que gradativamente se lentificam e cessam. dizem
que é um estado semelhante ao sono, à eternidade do sono. para
mim, tem algo de resgate: amar o tempo que nas coisas antecede
o tempo. amá-las e crer que antes houve dias e noites
quando só o rumor habitava as pias batismais
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021




08 janeiro 2022

mar becker / feito pó

 
 
 
os monges, a vida em silêncio
 
as línguas vivas, que nascem do fundo de línguas mortas
incessante, a primavera escura de lázaro. o livro. octavio paz
escrevendo à mão o poema irmandade
 
‘’também sou escritura’’
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021




04 outubro 2021

mar becker / o fim de uma estação

 




*
 
o fim de uma estação
 
as janelas semiabertas, as casas, a chuva, que parou há pouco
 
o céu nascendo e morrendo tantas vezes à superfície de uma
poça d’água, na calçada
 
os espelhos
 
a promessa de dias novos orientando aquele que atravessa uma
cidade ou um deserto
 
os rostos, os rastros
 
as cinzas dos nossos mortos espargidas
o pó que se ergue no voo da mariposa
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021




 

 


25 janeiro 2020

tiago fabris rendelli / mensagem para além da carne


foto: wladimir vaz

sou parte da aritmética louca:
do podre surge o mofo
flor fruto vida e morte
círculo eterno
de criar restos
desintegrar
e refazer o mundo.

sou o outro a outra
aquele e aquilo
e sei que existem mortos
que esperam o verbo certo
para subir aos céus.

sou um punhado de dias de que não me lembro
as tardes que perdi no horizonte
o soldado morto de alguma guerra esquecida
a família no campo depois da seca
a terra dura
o solo pueril
a despedida
a colheita que não vingou
o tempo de promessa esquecido.

sou os barcos perdidos
o sonho de Ícaro
a alquimia de Melquíades
os espantos de Pedro
as rezas de Maria
a primeira estrela existiu
e a luz que transporta a mensagem
                             do seu próprio fim.

é a finitude que nos abre o infinito.




tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017







24 agosto 2019

tiago fabris rendelli / verdade



não podemos nos furtar do equívoco
nem esquecer que os espelhos só refletem reflexos.

desconfiai dos corretos
dos que declaram a verdade
pois são os mesmos que fuzilaram Lorca
que seguem atirando poetas em covas rasas
                                              matando sonhos
                                              cegando os pássaros
                                              cortando as asas.



cuidado
aquele que se esquiva do erro
nega o princípio da beleza.



tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017







12 janeiro 2019

tiago fabris rendelli / a morte dos séculos




meu amor, ninguém conhece o seu próprio universo
nem sabe qual ponto de pele
será o epicentro da sucessão de fatos
relativos ao nosso próprio desaparecimento.

meu amor, caminhar sem rumo é em si algum destino
por isso não temas a perdição da noite
ou o vasto silêncio dos lugares abandonados
tudo possui o seu bocado de milagre
e quando cultivamos o tempo
florescemos eternidades.

meu amor, não chores pelas secas
pois a água nunca acaba
ela se renova em chuva
e leva a vida a passear por novos campos.

meu amor, temos 14 bilhões de anos
e duraremos menos de um século
por isso celebres a existência
não te esqueças de que nascemos diariamente
seja ao abrir os olhos pela manhã
seja na descoberta de uma nova estrela
ou no choro do recém-nascido
estamos em todos os instantes.

meu amor, somos o princípio e o fim
aquilo que se renova pelas eras
o que não se destrói
o assassino e a vítima de mãos dadas
o desespero entrelaçado com o riso
a dor do parto e o orgasmo
futuro, passado, presente
somos, meu amor
o que ainda está por vir
os mortos enterrados
as crianças que serão geradas
e o medo que um dia termina.


tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017









17 janeiro 2018

tiago fabris rendelli /claridade





vim pelo tempo estreito e curto
de alguma pátria antiga
de bocas sempre atadas.

te reconheço
pelos teus presépios e insultos
por teu remanso de águas repassadas.

mas o meu dia não está em ti.
está na multidão de esquinas e vozes abafadas
nas praças onde dormem os párias
nas margaridas regadas de lesmas
está no rancor da terra, tecendo
a morte sobre o pó incandescente.

cada instante aqui é um continente em chamas
(fogo tênue de corpos estendidos)
não me custa atravessar esse crepúsculo:
o outro lado mora em mim.

te reconheço
quando teus olhos de horizonte me transpiram medo.




tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017