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25 janeiro 2020

tiago fabris rendelli / mensagem para além da carne


foto: wladimir vaz

sou parte da aritmética louca:
do podre surge o mofo
flor fruto vida e morte
círculo eterno
de criar restos
desintegrar
e refazer o mundo.

sou o outro a outra
aquele e aquilo
e sei que existem mortos
que esperam o verbo certo
para subir aos céus.

sou um punhado de dias de que não me lembro
as tardes que perdi no horizonte
o soldado morto de alguma guerra esquecida
a família no campo depois da seca
a terra dura
o solo pueril
a despedida
a colheita que não vingou
o tempo de promessa esquecido.

sou os barcos perdidos
o sonho de Ícaro
a alquimia de Melquíades
os espantos de Pedro
as rezas de Maria
a primeira estrela existiu
e a luz que transporta a mensagem
                             do seu próprio fim.

é a finitude que nos abre o infinito.




tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017







24 agosto 2019

tiago fabris rendelli / verdade



não podemos nos furtar do equívoco
nem esquecer que os espelhos só refletem reflexos.

desconfiai dos corretos
dos que declaram a verdade
pois são os mesmos que fuzilaram Lorca
que seguem atirando poetas em covas rasas
                                              matando sonhos
                                              cegando os pássaros
                                              cortando as asas.



cuidado
aquele que se esquiva do erro
nega o princípio da beleza.



tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017







12 janeiro 2019

tiago fabris rendelli / a morte dos séculos




meu amor, ninguém conhece o seu próprio universo
nem sabe qual ponto de pele
será o epicentro da sucessão de fatos
relativos ao nosso próprio desaparecimento.

meu amor, caminhar sem rumo é em si algum destino
por isso não temas a perdição da noite
ou o vasto silêncio dos lugares abandonados
tudo possui o seu bocado de milagre
e quando cultivamos o tempo
florescemos eternidades.

meu amor, não chores pelas secas
pois a água nunca acaba
ela se renova em chuva
e leva a vida a passear por novos campos.

meu amor, temos 14 bilhões de anos
e duraremos menos de um século
por isso celebres a existência
não te esqueças de que nascemos diariamente
seja ao abrir os olhos pela manhã
seja na descoberta de uma nova estrela
ou no choro do recém-nascido
estamos em todos os instantes.

meu amor, somos o princípio e o fim
aquilo que se renova pelas eras
o que não se destrói
o assassino e a vítima de mãos dadas
o desespero entrelaçado com o riso
a dor do parto e o orgasmo
futuro, passado, presente
somos, meu amor
o que ainda está por vir
os mortos enterrados
as crianças que serão geradas
e o medo que um dia termina.


tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017









17 janeiro 2018

tiago fabris rendelli /claridade





vim pelo tempo estreito e curto
de alguma pátria antiga
de bocas sempre atadas.

te reconheço
pelos teus presépios e insultos
por teu remanso de águas repassadas.

mas o meu dia não está em ti.
está na multidão de esquinas e vozes abafadas
nas praças onde dormem os párias
nas margaridas regadas de lesmas
está no rancor da terra, tecendo
a morte sobre o pó incandescente.

cada instante aqui é um continente em chamas
(fogo tênue de corpos estendidos)
não me custa atravessar esse crepúsculo:
o outro lado mora em mim.

te reconheço
quando teus olhos de horizonte me transpiram medo.




tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017





08 julho 2016

tiago fabris rendelli / desmembramento



"porque só a dor / é capaz de nos revelar / a grande mentira / que há por detrás / de todas as coisas".

                           (gil t. sousa, passagem do poema "incerto")


I
não sei medir a vida,
minha balança sempre
caí para o absurdo.
II
a cidade, refletida pelos raios,
adormece no horizonte.
são fotografias tenebrosas
do grande diluvio que dorme em cada casa,
meu coração se afoga na tempestade.
III
abri a porta do peito,
deixei a guerra passar
sobrou só estilhaço,
caquinhos incoláveis
do espelho que fui.
sigo agora sem face,
posto que defunto não tem cara,
serei igual aos meus irmãos de azedume
e virarei capim com a alquimia do tempo.
IV
respiro os velhos mortos
apodreço pelo seus excessos de dias.
estou aferrado na cruz,
girando no mesmo círculo,
contorcido pelas dores
de todas as agulhas enfiadas nas unhas
para tampar os excessos de solidão
e que só terminam de arder
depois de brotadas em sangue.
V
o casal se beija.
haverá amor?.
terá sido um encontro celeste,
alguma movimento lento e milenar
que culminará em mil galáxias
explodindo sobre a cama?
ou terá sido alguma invenção
humana sobre o acaso?
o casal desunifica os lábios.
haverá amor?
VI
o inferno queimará o ar,
não sobrará nada,
serei eu o louco a professar misérias,
a abrir portas no céu,
a criar a melodia das trombetas.
sete lâmpadas acenderão na língua
e toda a penumbra será descoberta.
quem for digno romperá o selo de minha boca:
"Tarde demais!", direi,
pois já serei um oceano de vidro a enganar os pássaros.



tiago fabris rendelli



09 janeiro 2016

tiago fabris rendelli / para leopoldo maría panero



eletrochoques ritmam a melodia,
já não tenho mais corpo,
meus olhos se fundiram
para além das janelas
sujas do teu quarto.
escuto o teu grito de borracha abafado,
enquanto teu cérebro sofre da sanidade
de mil elefantes.
tua verdade não é o mijo na calça,
nem o olhar mirando o nada,
nem os teus delírios de infância
amaldiçoados por cachorros loucos.
Mondragón!
Mondragón!
Mondragón!
ecoa o grunhido desse bicho
que engole verdade
e caga demência.
o real habita uma criança morta,
se vê nos reflexos dos retratos
daqueles que não lembramos mais,
está impressa com sangue nos mapas
que apontam continentes desaparecidos.
pela loucura daqueles que se arrependem do suicídio.
pela insanidade dos que ensinam a liberdade no cárcere.
pelo amor que coloca secura nas flores.
pelo teu cigarro aceso e teu fumar de estrelas.
por tudo isso e mais,
grito o teu nome:
Leopoldo!
Leopoldo!
Leopoldo!
tua lucidez
é uma serpente com asas
a voar pelos séculos.


tiago fabris rendelli




19 janeiro 2014

tiago fabris rendelli / paisagem


                               Guardo as coisas mais preciosas dentro de mim:
                               um menino que esconde pássaros de asas gigantescas nos dedos,
                               inventa nomes e mistifica a vida.

                              
                               Pois lá fora
                               um rio de sangue caudaloso corre das veias,
                               olhos agrestes vão desertando,
                                    sementes não vingam,
                               raízes apodrecem,
                                             pétalas enegrecem a primavera.


                               Quem dormirá essa noite o último sono?
                               Quem abraçará o tempo como se abraça um filho deformado?
                               Quem forjou a memória daquilo que fomos?
                               Quem arquitetou a imensidão dos desmoronamentos?

                              
                                                                Solo morto,
                                                                     morro acima,
                                                                morro abaixo.
               

                                               Guardo ternuras
                                               dentro do escuro de

                                               dentro           de mim.

                               



                              tiago fabris rendelli





24 outubro 2013

tiago fabris rendelli / sarauvaia#2



Vislumbrar humanidades é treino diário de contemplação.
Alguém recita uma poesia belíssima e inaudível, encoberta
pelas vozes que tentam ser a voz. Não aceito essa nossa
tentativa de glória, nem a ausência de enxofre nos santos,
não ao correr frenético do mundo, ao amor sem sujeira, não
aceito a tentativa de transformar a vida em lugar asséptico.

Atirem pedras, rompam vitrines, admirem as figueiras bai-
lando de sua força imóvel sobre os homens. Toquem e to-
quem tudo, quebrando as janelas, ferindo a palma com o
caco afiado daquilo que desejamos ser.

─  BEBA COCA-COLA ATÉ A MORTE.

Discursa a voz eterna, a falácia da nova era,
anunciando bons tempos, boas novas, mar remoto.

E os retirantes sucumbem, como touros imolados.
E os famintos comem migalhas de nossos dentes.
E as bombas chovem sobre crianças longínquas.

Esperamos a liberdade com preces para esse deus que es-
traçalha seus rebentos.



tiago fabris rendelli
euOnça
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editora medita
2013