31 agosto 2020

federico garcia lorca / balada da água do mar



O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.

– Que vendes tu, rapariga,
de turvos seios ao ar?

– Vendo, senhor, água
do mar.

– Que levas tu, jovem negro,
misturado em teu sangue?

– Levo, senhor, água
do mar.

– Essas lágrimas salobres,
onde te nascem, mãe?

– Choro, senhor, água
do mar.

– Coração, esta amargura
tão funda, donde te vem?

– Amarga muito, a água
do mar.

O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.




federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013







30 agosto 2020

nuno júdice / tempo livre



Numa tarde de domingo, em Central Park, ou
numa tarde de domingo, em Hyde Park, ou
numa tarde de domingo, no jardim do Luxemburgo, ou
num parque qualquer numa tarde de domingo
que até pode ser o parque Eduardo VII,
deitas-te na relva com o corpo enrolado
como se fosses uma colher metida no guarda-
napo. A tarde limpa os beiços com esse
guardanapo de flores, que é o teu vestido
de domingo, e deixa-te nua sob o sol frio
do inverno de uma cidade que pode ser
Nova Iorque, Londres, Paris, ou outra qualquer
como Lisboa. As árvores olham para outro sítio,
com os pássaros distraídos com o sol
que está naquela tarde por engano. E tu,
com os dedos presos na relva húmida, vês
o teu vestido voar, como um guardanapo,
por entre as nuvens brancas de uma tarde
de inverno.



nuno júdice
poesia do mundo/2
afrontamento
1998






29 agosto 2020

joão rebocho / saíres do teu corpo





saíres do teu corpo
ou deste livro
da cena de ver de longe
o teu corpo,
e como ficaste velho
duas horas até aos correios,
velho ou criança
ou fantasma
ou cansado de trabalhar no farol
subir ao farol
com um fósforo
aceso, e o vento
o equívoco
muda para inequívoco,
depois
ninguém compra, e tu
teres uma velhice miserável



joão rebocho
não reclamados
heteronimus
2020






28 agosto 2020

rui diniz / ils ont bu l´absinthe avec odette dulac



Bebi absinto com Odette Dulac. Senti-me então
especialmente disposto a escrever e compus
um poema sobre Peale Bishop, morto em 44.
Não era a peste de Lisboa que então me encheu
de desespero. Não eram os veleiros de Blood
que iam lentamente consumindo a memória
leal dos heróis. Não era o meu cérebro, enegrecido
por vezes pela morte de gertrude, de Lautrec, do
próprio Cocteau, afogado em ópio.

Bebi gim com Júdice e Ernst, uma época
inteira mergulhada em cogitações. Uma noite
acordei e tinha a boca cheia de sangue. Ao meu
lado Anya Seton respirava docemente.
Pus então um disco e acendi uma
luz. Os anos escoavam no soalho surdamente.
Depois saí. Bach – podia escutá-lo ainda daquela
praia tão antiga onde o próprio Van Gogh
cortara a orelha. O terror acompanhava
a vastidão das espumas, os rochedos soletravam
a desolação.

Bebi esse fogo nos meus nervos – vodka de
milénios, alongamento dos naufrágios para
o negrume irreal das costas, o pudor que se
inclinava para o areal como um século negro.
O verão acendia as pequenas doenças de infância.
e ouvia de novo, fora do sonho, as vagas sem idade
como um sonho.

Bebi com Zizi no bar Z. numa shooting gallery
estive com Auden e Zane Grey.
li.lhes as cartas estranhas de Cowley e
Faulkner. Sorrimos de todas as gerações.
Também eles beberam outrora com Dulac o absinto.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977






27 agosto 2020

gonçalo m. tavares / ignorância



Uma ignorância súbita, de uma intensidade incalculável.
É não entender da forma mais humana que existe.
Não é o medo, no animal,
Não é a explosão na matéria: é o espanto.




gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004













26 agosto 2020

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)



6

NÃO temos margens, na verdade,
Nem tu nem eu.



guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965












25 agosto 2020

mia couto / danos e enganos



Aquele que acredita ter visto o mundo,
não aprendeu a escutar-se no vento.

Aquele que se deitou na terra,
vestiu sonhos como se fossem vidas
e tudo o mais fossem regressos.

Mas aquele que tocou o fruto
provou a inicial doçura do tempo.

E quando tombou
de si mesmo se fez semente.




mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013







24 agosto 2020

alejandra pizarnik / lanterna surda




     Os ausentes respiram e a noite é densa. A noite tem a
cor das pálpebras do morto.
     Toda a noite faço a noite. Toda a noite escrevo. Palavra
por palavra eu escrevo a noite.



alejandra pizarnick
antologia poética
extracción de la piedra de locura - 1968
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020











23 agosto 2020

alberto caeiro / um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.



XLV

Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renque e o plural árvores não são coisas, são nomes.


Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de coisa a coisa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!

7-5-1914


alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946







22 agosto 2020

luís carlos patraquim / sentam-se sob as acácias no asfalto roto




Sentam-se sob as acácias no asfalto roto
os mutilados com cigarros de embalar
Nenhum som os recorta.
E todos os sentidos foram amputados.
Nem para a tarde crescem frustrados.
Esperam. Que inconclusa forma
os limita em fórmula de serração?
Que ameaça os delira? Nenhuma flor
explode, poeta, no coração?
Os mutilados sonharão? Suas pernas?
O desejo, fruto podre adubando. Outra mão?
Que triste palavra os baba
no cigarro morto! Vendem.
Nenhum incesto os estanca.
À revelia do sol, os mutilados
montam banca.



luís carlos patraquim
morada nómada
língua morta
2020








21 agosto 2020

jack gilbert / pontos altos e interstícios



Pensamos na duração de uma vida, sobretudo, como o excepcional
e as mágoas. Do casamento lembramos as crianças,
as férias e as emergências. As partes raras.
Mas o melhor é amiúde quando nada está a acontecer.
A maneira como uma mãe pega na criança sem fazer
caso disso e a leva por Waller Street,
conversando com outra mulher. E se ela
pudesse guardar tudo isso? As nossas vidas acontecem entre
o memorável. Eu perdi dois mil pequenos-almoços
habituais com Michiko. Aquilo em que mais lhe sinto
a falta é desse lugar comum que já não consigo recordar.



jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
deStrauss
2020







20 agosto 2020

carlos de oliveira / descida aos infernos


5
(E descendo
é como se descesse dentro de mim
nas cobardias-detritos das águas,
nos heroísmos-resíduos das fráguas.

E seja por que for
no suor anónimo das mágoas)



carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001







19 agosto 2020

eduardo chirinos / poema com cães


Conheci-o em Istambul.
Da sua boca pendia um cigarro turco
tinha os olhos pequenos
e uma vaga expressão de príncipe arruinado.
Nunca mais voltei a vê-lo, mas comprei o seu retrato
num leilão nos arredores de Londres.
Os meus filhos inventam subterfúgios para não o olharem,
as visitas desculpam-se, inventam mil histórias,
preferem não vir.
A minha mulher acaricia o lombo dos cães.
Não os teme. Diz que são amigos do homem.



eduardo chirinos
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
por luís filipe parrado
língua morta
2020










18 agosto 2020

maria gabriela llansol / o raio sobre o lápis


VIII

______________ descobrimos, no pinhal, a configuração de uma caveira: uma caveira emerge no pinhal, à beira do caminho; olhando-a de perto, analisando-a, verifico que não é uma caveira, mas uma pedra.
     Só eu tive a ilusão de ser uma caveira por duas manchas incravadas no granito.
     — É um logro — diz-me Aramis. — Não foi propriamente uma ilusão, mas uma percepção difusa. De uma cabeça assente no chão trazendo à minha consciência o suporte da morte.
     Foi um ardil da pedra dirigido ao meu olhar.
     Só eu, naquele momento a atravessar o pinhal e a floresta das faias, teria a emoção visual de que estava a descobrir, apoiada na caruma, e à beira da vereda, uma ex-cabeça humana.  

 ~

maria gabriela llansol
julião sarmento
o raio sobre o lápis
livro de artistas
europalia 91
1991





17 agosto 2020

francis ponge / o ciclo das estações




Cansadas de se terem contraído todo o inverno as árvores de repente gabam-se de ser enganadas: soltam as suas palavras, uma onda, um vómito de verde. Tentam alcançar uma folheação completa de palavras. Tanto pior! As coisas arranjar-se-ão como puderem! E, na realidade, arranjam-se! Nenhuma liberdade na folheação… As árvores lançam, pelo menos é o que pensam, não importa que palavras, lançam caules para neles suspenderem mais palavras: os nossos troncos, pensam elas, aqui estão para tudo assumirem. Esforçam-se por se esconderem, por se confundirem umas nas outras. Julgam poder dizer tudo, cobrir inteiramente o mundo com palavras variadas: mas não dizem senão «as árvores». Incapazes até de reter os pássaros que delas voltam a partir, embora se alegrassem por terem produzido tão estranhas flores. Sempre a mesma folha, o mesmo modo de desdobramento, e o mesmo limite, sempre folhas simétricas umas às outras, simetricamente suspensas! Tenta mais uma folha! — A mesma! Mais outra! A mesma! Em suma, nada poderia pará-las senão de súbito esta observação: «Não se sai das árvores por meios de árvore». Um novo cansaço, e uma nova mudança moral. «Deixemos tudo isto amarelecer, e cair. Que venha o taciturno estado, o despojamento, o OUTONO.»



francis ponge
le parti pris des choses
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996






16 agosto 2020

franz kafka / diários



1912, 9 de Julho


Ainda não escrevi nada. Vou começar amanhã. Senão caio outra vez num período de insatisfação irresistível e prolongado; já estou até a entrar nele. As crises nervosas estão a aparecer. Mas se conseguir fazer qualquer coisa, não preciso de tomar precauções supersticiosas.

A invenção do demónio. Se estamos possuídos pelo demónio, não pode ser só por um, porque então viveríamos, pelo menos na terra, em paz, como se fosse um Deus, em união, sem contradições, sem reflexão, sempre seguros do homem atrás de nós. O seu rosto não nos amedrontaria, porque, como seres diabólicos, teríamos, mesmo que um pouco sensíveis à vista, a esperteza suficiente de preferir sacrificar uma mão para lhe tapar a cara com ela. Se estivéssemos possuídos apenas por um demónio, um que tivesse uma visão tranquila, calma, de toda a nossa natureza, e liberdade para dispor de nós em qualquer momento, esse demónio teria também poder suficiente para nos manter durante o âmbito de uma vida humana muito acima do espirito de Deus em nós, e mesmo para nos balançar de um lado para o outro para que assim não víssemos nenhum sinal dele e consequentemente não fôssemos perturbados por esse lado. Só uma multidão de demónios pode ser responsável pelas nossas desgraças terrenas. Porque não se matam eles uns aos outros até só ficar um, ou porque não ficam subordinados a um grande demónio? Qualquer das duas hipóteses estaria de acordo com o princípio diabólico de nos enganar tanto quanto possível. Faltando unidade, para que serve a atenção escrupulosa que todos os demónios nos prestam? Deve importar muito mais a um demónio que nos caia um cabelo do que a Deus, uma vez que o demónio perde na realidade esse cabelo e Deus não. Mas não conseguimos atingir um estado de bem-estar enquanto houver dentro de nós tantos demónios.




franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986







15 agosto 2020

adília lopes / para um vil criminoso



Fizeste-me mil maldades
e uma maldade muito grande
que não se faz
acho que devo ter sido a pessoa
a quem fizeste mais maldades
nem deves ter feito a ninguém
uma maldade tão grande
como a que me fizeste a mim
não sei se tens remorsos
tu dizes que não tens remorsos nenhuns
porque dizes que és um vil criminoso
para mim
eu também sou uma vil criminosa
mas não para ti
desconfio que tens o remorso
de ter alguns remorsos
por me teres feito mil maldades
e uma maldade muito grande
a maldade muito grande está feita
e não se faz
acho que essa maldade muito grande
nos aproximou um do outro
em vez de nos afastar
mas para mim é um drôle de chemin
e para ti também deve ser
mas com um vil criminoso nunca se sabe


adília lopes
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987






14 agosto 2020

josé luis garcía martin / a chuva



A chuva é um soldado triste,
uma sentinela sem sono. Espias
sua firme juventude. Ardem os lábios
em negra chama de melancolia.

Ruas lascivas sobem pelas suas pernas,
distante e firme não sorri.
Ávidas mãos pelo rosto imberbe,
mãos de névoa putrefactas insistem.

Silencioso acerca-se um cavalo
da água escura e fresca do desejo.
Ilumina-se a cara do soldado
num instante de lua, leve, longe.

Envolto em negra chama chamas
ao plural sentinela minucioso.
Imóvel, mudo, segue seu destino
noutro mundo, noutro tempo, noutro.


josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998






13 agosto 2020

judite canha fernandes / sem título



dois dentes de leão
fundidos em seus pequenos fios brancos
passaram a voar
e sumiram
mais altos do que as fábricas



judite canha fernandes
podemos amar ou podemos
editora urutau
2019









12 agosto 2020

marta navarro; paola d´agostino / também dizem que o caminho de casa




Também dizem que o caminho de casa
se encontra por doçura
quando cai uma noite qualquer.
Estou aqui
com as chaves na mão
à espera de um sinal.



marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014