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25 agosto 2020

mia couto / danos e enganos



Aquele que acredita ter visto o mundo,
não aprendeu a escutar-se no vento.

Aquele que se deitou na terra,
vestiu sonhos como se fossem vidas
e tudo o mais fossem regressos.

Mas aquele que tocou o fruto
provou a inicial doçura do tempo.

E quando tombou
de si mesmo se fez semente.




mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013







15 junho 2020

mia couto / tristeza



A minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.

A minha tristeza
é a do astrónomo cego.



mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013













14 dezembro 2016

mia couto / declaração de bens



Só tenho palavras
para o indizível.

Só tenho voz
para emudecer.

Só trago nome
para o que nunca nasceu.

Uma única certeza
demora em mim:
o que em nós já foi menino
não envelhecerá nunca.


mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013



06 agosto 2016

mia couto / o bebedor de sóis



No deserto,
onde o céu é redondo,
de mim mesmo sou miragem.

Na areia
me afundo, defunto,
até não haver sombra
senão sob cansaços de pálpebras.

Quando não há mais
que vento e dunas,
em mim invento o derradeiro oásis.

Uma raiz
então me convoca,
pedindo-me certo e definitivo.

Não nasci, porém,
para junto de fontes morar.

De novo,
vou por onde não há caminhos.

E só no fogo deixo pegada.


mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013



11 fevereiro 2016

mia couto / escrita



Tenho fome de um nome
e procuro-o para além dos idiomas
como garimpeiro de vozes
esgravatando um chão de silêncios.

Ecoa em mim
um búzio sem mar,
um peixe agoniza
no estremecer da página nua.

Hoje fui beijado por serpente.
E me espelhei
água sobre a lua.

Hoje escrevi mel
sobre a picada da abelha
isso a que outros chamam poesia.



mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013




20 outubro 2015

mia couto / poema didático



Já tive um país pequeno,
tão pequeno
que andava descalço dentro de mim.
Um país tão magro
que no seu firmamento
não cabia senão uma estrela menina,
tão tímida e delicada
que só por dentro brilhava.

Eu tive um país
escrito sem maiúscula.
Não tinha fundos
para pagar a um herói.
Não tinha panos
para costurar bandeira.
Nem solenidade
para entoar um hino.
Mas tinha pão e esperança
para os viventes
e sonhos para os nascentes.

Eu tive um país pequeno,
tão pequeno
que não cabia no mundo.



mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013