26 fevereiro 2024

joão miguel fernandes jorge / a neve começa

 
 
A neve começa. O frio
torna o ar transparente.
Perigo
é uma carta que vem longe.
 
A terra traz os frutos.
 
Tu dirás que sou eu
eram meus olhos
nunca a neve foi silêncio
nem o frio
voo de ave.
 
Suspenso da atmosfera crepuscular
vem pela luz da madrugada
 
conheço os seus cabelos cortados em mármore
versos calmos e razoáveis tinham sido as palavras
reconheço os traços vigorosos do seu rosto
ao qual dirás que
 
nunca foram silêncio nem o frio voo de ave.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019





25 fevereiro 2024

armando silva carvalho / o peso das fronteiras

 
 
 
Aqui me tens. E o texto.
Partículas. Partes sensíveis, pequenas
vísceras onde ocultam vermes;
uma poeira doce;
depois uma ferida.
 
Repara bem nas frases.
Na lenta fusão das letras sob o estômago.
Feriste-me. E as sílabas de um mar
há tanto, tanto tempo desejado,
vais ouvi-las mais tarde
quando discutes Marx, ofendes os amigos
ou passeias de mão dada com os poderes do tédio.
 
Insisto apenas para que me descubras.
Mais ou menos absorto. Virado de costas
ou simplesmente lendo
sem fome as páginas do tempo.
Nunca pesei muito.
Aliás, repara, quando os textos explodem
e se notam no ar as mil paciências
sobre a paciência;
quando a solidão se escama
como um peixe dúbio,
tudo se torna leve, final, tenso, coeso,
e tu podes ouvir, uivando,
um cão banhado em lágrimas.
 
Eu sou eu. Um cão dentro do túnel.
Já de patas desfeitas. Mais frio. Ao frio.
Roubando, entre os antigos, ossos
roendo, entre os modernos, mitos.
 
Os poetas começam onde acaba isto.
Este penso infectado que me pões nos olhos.
Um país termina. Logo nasce um outro.
E o território és tu.,
população, governo.
Amor administrativo; viva pátria
dos cínicos.
 
Vamos: sacode as armas quietas
da mentira.
Alarga as fronteiras
com teu riso sinistro.
 
Eu, mar, ligadura dobrada
sobre o sol do amor,
ardo na terra. Vou e venho.
E, além do mais, sou isto.
 
 
 
armando silva carvalho
o peso das fronteiras 1976
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007
 




24 fevereiro 2024

irene lisboa / sobre as palavras

 
 
 
SOBRE as palavras, sua importância e oportunidade, seu valor, bastas vezes me tenho detido.
 
No próprio acto de escrever (como as palavras, afinal, é que o permitem) esta reflexão de acode e me peia tanta vez: a linguagem antecede ou sucede o pensamento? que parte faz dele?
 
Nem a mim própria me pareça tola a minha pergunta!
 
A linguagem aflui-nos, ou vem-nos num certo encadeamento mental em que nos envolvemos, em que penetramos, como um surto natural, mais ou menos fácil, do espírito. (Lembremo-nos dos faladores solitários, faladores sem ouvintes.) E assim, sobre uma rápida, esporádica ou fugidia ideia, qualquer ideia ou sensação – tão difícil é desembaraçar estas daquelas! – as palavras entram num jogo de certa independência, mudas ou articuladas, ou até mesmo gesticuladas e vagas, sobrepondo-se à tal coisa (ideia ou sensação), perseguindo-a e fugindo-lhe e enredando-se nela… confundindo-se e dilatando-se à custa dela, a ponto de a afogarem, não poucas vezes… de a excederem!
 
É que as palavras têm espírito e vida por si próprias. O que tão bem se patenteia musical e sentimentalmente no verso. Um espírito que arrasta e sujeita os seus forçados manejadores, mau grado o desejo de supremacia e de domínio da parte destes.
 
Mercê das palavras usadas se salta de um para outro lado… Chegando nós a tornar-nos confusos e prolixos, pouco substanciosos, acorrentados àquele tal sortilégio.
 
Mas é amor o que as palavras em nós despertam! Um gosto de as seguir, de as explorar e até de as esperar pacientemente para que qualquer coisa interior, nossa, saia do seu limbo.
 
E não serão elas próprias que a criam, frequentemente?
 
 
 
irene lisboa
da estrela
solidão II
portugália editora
1966
 




23 fevereiro 2024

inger christensen / alfabeto

 




 

7
 
as guerras existem, as ruas, o esquecimento
 
e a erva e os pepinos e as cabras e o tojo,
o entusiasmo existe, as guerras existem;
 
os galhos existem, o vento que as levanta
existe e o desenho único dos galhos
 
da árvore chamada carvalho existe,
da árvore chamada freixo, bétula,
o cedro existe, o desenho repetido
 
existe, no saibro do caminho do jardim; existe
também o pranto, e o epilóbio e a Artemisa existem,
os reféns, os gansos, as crias dos gansos;
 
e as armas existem, um enigmático logradouro,
selvagem, ermo e decorado apenas com groselhas,
as armas existem; no meio do iluminado
gueto químico existem as armas
com a sua antiquada e pacífica precisão existem
 
as armas, e as mulheres lamentando, saciadas
como corujas gananciosas; a cena do crime existe;
a cena do crime, sonolento, normal e abstracto,
banhando numa luz caiada, abandonada,
este poema venenoso, branco, que se desintegra
 
 
 
inger christensen
alfabeto
trad. ricardo marques
não (edições)
2024
 



22 fevereiro 2024

luis antonio de villena / tractatus de amore

 
 
I
 
Não digas nunca: Eis aqui o amor.
O amor é sempre um passo mais,
o amor é o degrau seguinte da escada,
o amor é apetência contínua
e se não estás insatisfeito não há amor.
O amor é os frutos na mão,
ainda por morder.
O amor é um perpétuo aguilhão
e um desejo que deve crescer sem barreiras.
Não digas nunca: Eis aqui o amor.
O verdadeiro amor é um não chegou ainda…
 
 
 
luis antonio de villena
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



21 fevereiro 2024

maria velho da costa / desescrita





 

(Ao Afonso e ao Afonso)
 
 
Quando o disserem calo ou farta brotoeja
cardo sem gosto e arremedo velho
tão serôdio apoucar de outros mais hábeis
ou por tão burilada terem sua arte
ou por sofrentes mais no engenho dela,
hei-de guardá-lo meu por apara da gesta
que todos inventamos por modesta
ao pegar das palavras todas gastas
e pôr-me com mais força a ver da giesta
e do rumor das rugas dos que passam
que para isso estou,
bem mais que no contá-lo e dividi-lo.
Por isso não se afina entendimento lato
nem maestria mais ao escrito e trato:
são tantos os instantes a cuidar pla rama e rua
que só fica o que resta
fresta
cantata rota e rouca
entre o escrito e a estória.
 
 
 
maria velho da costa
desescrita
afrontamento
1972
 


 

20 fevereiro 2024

marguerite duras / paris, 25 de dezembro de 1994

 
 
 
A chuva das crianças caiu no sol.
Com a felicidade.
Fui ver.
Depois foi preciso explicar-lhes que era normal.
Há séculos.
Porque as crianças não compreendiam, não podiam ainda compreender a inteligência dos deuses.
Depois foi necessário continuar a caminhar na floresta.
E cantar com os adultos, os cães, os gatos.
 
 
marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999




19 fevereiro 2024

leonor de almeida / entronização

 




 
Tenho o braço cansado,
A mão dorida, trôpega…
Mas uma espécie de ânsia sôfrega
Ordena:
           Empurrar tudo!
– Não quero, nem passado,
Nem presente,
Nem futuro! –
 
O braço faz de muro,
A mão abre caminho, coerente…
 
Quero uma estrada cá dentro… lisa, plana,
Para a tua palavra mágica, profética,
Bela e magnética,
Passear livremente,
E demoradamente!...
 
 
 
leonor de almeida
caminhos frios (1947)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres, e. m. de melo e castro
moraes editores
1971





18 fevereiro 2024

marta navarro; paola d´agostino / faço-me à minha semelhança

 



 
 
 
Faço-me à minha semelhança
trabalho diário e obsessivo
Requer um espelho duplo num bolso
e um corrector de entoações no outro
Faço-me à minha imagem
noite e dia e dias santos
Fecho para balanço em dias de água límpida
Requer arregaçar as calça enfiar os pés no rio e
pousar os ombros sobre os joelhos
brincar com os dedos dos pés e
aguardar o convite de Narciso
para dançar
 
 
 
 
marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014
 



17 fevereiro 2024

martín lópez-vega / para o tempo que virá

 
 
 
credite posteri
 
Horácio



 
Para o tempo que virá
burilamos a nossa pegada,
 
para o tempo que virá
e nos conhecerá através de um livro de imagens
no qual procurará as dos audazes,
as dos livres, a dos abnegados,
e nas fileiras de iguais acomodados
reparará apenas num estilo, num penteado,
um motivo de riso repetido
às custas de quem os seus afãs empenharam
em vãos méritos fugazes:
 
para o tempo que virá
a descobrir ruínas novas que revelarão
os nossos equívocos sobre o passado
e terá feito da nossa língua
uma geringonça deliciosa na qual falar
sobre coisas prodigiosas que nunca tivéramos sonhado,
 
para o tempo que virá e quererá saber
como nos amamos, o motivo do nosso sofrimento
e em que nos distinguimos do triste rebanho.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de jorge melícias
officium lectionis edições
2022




16 fevereiro 2024

sandra costa / manual da vida breve

 
9.

O tamanho das flores
prende-me ao chão
não serve de nada encontrar um lugar
onde possa ser outra coisa qualquer


sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021

officium lectionis edições
2021




15 fevereiro 2024

miguel serras pereira / à tona do vazio

 
 
 
Não te leva nem traz a memória das horas
que voltam a morrer com o dia ao fim do dia
 
Por isso nunca te lembrei embora agora
de repente esta noite à tona do vazio
sejas tu afinal quem não está aqui
 
Pudesse assim morrer-se ou um dia morrer fosse
como sem ter de te lembrar não te esqueci
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
todo o ano 1990
barricada de livros
2022




 

14 fevereiro 2024

fátima maldonado / signo dos peixes

 
 
5

A tua ausência é na minha vida
o buraco na ponte onde pensava
apenas oscilando
transitar a velhice.
Posso, por ele debruçando-me, sentir o precipício
o rochoso recorte das grutas esverdeadas
o contacto da pedra na aresta do crânio
poroso no engaste que liga as duas têmporas,
aberta melancia partida na talhada
renda velha que esgarça na toalha de altar.
A luz que banha a rocha espraia
reflexo rápido que nos cruza a pupila,
o mesmo projector que varre uma prisão,
a espada que se enterra no cachaço do touro
deixando um pré-aviso
que cintila no ar como um cristal de neve
destruindo a sóbria anatomia de nervos e sistemas,
a estrutura da folha que existe sepultada
por baixo de uma pele, seja de boi ou lama,
a concha que repete os dois ou três modelos
que existem renovando-se.
E mesmo assim prossigo
rasando a perspectiva,
gangrenam-se-me os pés,
partindo-se aos bocados
ouço bater os ossos
na crista dos rochedos.
O cérebro envolvido por folha rendilhada,
guardado no abrigo sangrento do herbário,
rolando por montes e por fragas
deixa-me pensamentos espalhados como amoras.
Suspensos nos espinhos das sebes poeirentas
ficam os raciocínios à espera que os pardais
caindo de repente em bandos destemidos
lhes venham debicar ideias comatosas
secando já nas bagas da sua exactidão.
Nos bicos acerados resta o mercúrio das gotas
da lógica que escorre em fios de ovos metálicos
sobrando dos conventos que abrigam destroços
dos módulos lunares.
Sentada na areia
coalhada de limalha
como os restos caídos da bigorna
que o ferreiro afasta para o lado
sinto o desejo amargo de te contar o sonho
em que a comida gelando no meu prato
me afasta da ideia que possa saciar-me.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
signo dos peixes
averno
2021