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22 fevereiro 2024

luis antonio de villena / tractatus de amore

 
 
I
 
Não digas nunca: Eis aqui o amor.
O amor é sempre um passo mais,
o amor é o degrau seguinte da escada,
o amor é apetência contínua
e se não estás insatisfeito não há amor.
O amor é os frutos na mão,
ainda por morder.
O amor é um perpétuo aguilhão
e um desejo que deve crescer sem barreiras.
Não digas nunca: Eis aqui o amor.
O verdadeiro amor é um não chegou ainda…
 
 
 
luis antonio de villena
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



30 setembro 2016

luis antonio de villena / acerca dos anjos na poesia



(Jorge de Sena)


É verdade que ao dizer anjo podamos a realidade,
o que não significa negar que há corpos que se compram
nem tão-pouco o difícil do choque entre vidas opostas
(chame-se amor, camaradagem, vida em comum
ou qualquer outra relação que concilie oposição, torneio).
Ao dizer anjo fazemos uma súplica,
pedimos mais realidade e, simulando um truque metafísico,
postulamos a plenitude do corpo,
a queimadura sanguínea. (Não se oculta impureza.)
Há corpos que se compram – mas, claro, amigo –
e há sordidez e barro, palavras afiadas
e deslizes de sombra… (Toquei cinza.)
Mas também há corpos que se oferecem
 – e incluem a alma no conjunto –
e aí também há sordidez,
com manhãs muito ácidas, súbitos desencantos
que desmoronam tudo
(embora possa voltar a levantar-se,
pois existem amantes que semelham estimáveis
arquitectos e até serventes de pedreiro).
Ao dizer anjo não se é generoso
nem retórico, sem mais,
entende-se, apenas, que o mundo é imperfeito
mas que há rastos, sinais, rostos
de outra realidade que o saturnal invoca.
Ao dizer anjo pede-se morte, proclamando vida.
Ao dizer anjo – é certo – designamos o inumano,
o resplendor celeste de singulares humanos
que existem, e não existem, eleitos.



luis antonio de villena
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985




11 julho 2016

luis antonio de villena / uma arte de vida



Viver sem fazer nada. Tratar do que não interessa,
tua gravata à tarde, uma carta que escreves
a um amigo, a opinião sobre um quadro, que dirás
conversando, mas que não terás o mau gosto
de pretender escrita. Beber, que é um prazer efémero.
Amar o sol e desejar verões, e o inverno
lentíssimo que convida à nostalgia (de onde
essa nostalgia?). sair todas as noites, compor
o foulard com carinho esmerado em frente ao espelho,
embriagar-te em beleza quanto possas, perseguir
e ansiar corpos jovens, planícies prodigiosas,
todo o mundo que cabe em tanta euritmia.
Deixar de manhãzinha tão fantásticos leitos,
cheirar as mãos enquanto buscas táxi, gozando
na memória, porque falam de pêlos macios e delícias
e ocultos lugares e perfumes sem nome,
suaves como os corpos. Então que frio amanhecer,
como é triste, que belo! Os lençóis vão acolher-te
depois, um tanto ermos, esperarás o sono.
Do dia que virá não sabes nada. (Não consultas
oráculos.) Queimar-te-ão tédios, emoções,
tertúlias e belezas, as rosas de um banquete
sumptuoso, e as velhas vielas, aí onde se sente
tudo, no Verão, como um aroma intenso.
Viver sem fazer nada. Tratar do que não interessa.
Se tudo corre mal, se enfim tudo é cruel,
como Verlaine, saber ser o rei de um palácio de inverno.



luis antonio de villena
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985