30 setembro 2016

luis antonio de villena / acerca dos anjos na poesia



(Jorge de Sena)


É verdade que ao dizer anjo podamos a realidade,
o que não significa negar que há corpos que se compram
nem tão-pouco o difícil do choque entre vidas opostas
(chame-se amor, camaradagem, vida em comum
ou qualquer outra relação que concilie oposição, torneio).
Ao dizer anjo fazemos uma súplica,
pedimos mais realidade e, simulando um truque metafísico,
postulamos a plenitude do corpo,
a queimadura sanguínea. (Não se oculta impureza.)
Há corpos que se compram – mas, claro, amigo –
e há sordidez e barro, palavras afiadas
e deslizes de sombra… (Toquei cinza.)
Mas também há corpos que se oferecem
 – e incluem a alma no conjunto –
e aí também há sordidez,
com manhãs muito ácidas, súbitos desencantos
que desmoronam tudo
(embora possa voltar a levantar-se,
pois existem amantes que semelham estimáveis
arquitectos e até serventes de pedreiro).
Ao dizer anjo não se é generoso
nem retórico, sem mais,
entende-se, apenas, que o mundo é imperfeito
mas que há rastos, sinais, rostos
de outra realidade que o saturnal invoca.
Ao dizer anjo pede-se morte, proclamando vida.
Ao dizer anjo – é certo – designamos o inumano,
o resplendor celeste de singulares humanos
que existem, e não existem, eleitos.



luis antonio de villena
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985




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