22 dezembro 2022

miguel torga / unha negra



 
Hoje,
Nem a vida me foge,
Nem eu fujo;
É não sei quê no sol
Que está sujo,
 
 
 
miguel torga
diário I
1941
poesia completa vol. i
dom quixote
2007





 

21 dezembro 2022

ezra pound / o agravo da escadaria cravejada

 



 
Os degraus cravejados já estão brancos do orvalho,
É tão tarde que o orvalho ensopa minhas meias d gaze,
E deixo cair a cortina de cristal
E contemplo a lua, através do claro outono.
 
                                                                    RIHAKU
 
 
 
ezra pound
antologia poética
personae
tradução m. faustino
editora ulisseia
1960




20 dezembro 2022

maurice blanchot / não tinha inimigos

 
 
 
Não tinha inimigos, não era incomodado por ninguém. Por vezes criava-se uma vasta solidão na minha cabeça onde o mundo inteiro desaparecia, voltando a sair intacto, sem um arranhão, sem nada em falta. Quase perdi a visão quando alguém esmagou vidro nos meus olhos. Reconheço que esse golpe me abalou. Senti que estava a penetrar o muro, a deambular num arbusto de sílex. O pior foi a brusca e chocante crueldade do dia – não podia olhar nem deixar de olhar. Ver era aterrador, deixar de ver dilacerava-me da testa à garganta. Para além disso, ouvia gritos de hiena, o que me expôs à ameaça de um animal selvagem (esses gritos, acredito, eram os meus).
 
 
 
maurice blanchot
a loucura do dia
trad. ricardo ribeiro
sr teste edições
2021




19 dezembro 2022

sami mahdi / os extremos da ilusão



 
vossa foi
esta formosa noite.
vossa foi
esta longa charla.
e dela manava contínua ilusão –
que a ilusão não se origina de um absurdo.
 
falaste-nos de outra nuvem
de outra estrela
e só nos reservamos este pouco.
e chamais segredo ao que entre nós existe?
 
se quereis que cantemos juntos
e juntos gracejemos
reconheçamos que o cantar está cansado
invertamos os termos
e comecemos pela última das penas.
 
 
 
sami mahdi
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de adalberto alves
assírio & alvim
2001
 
 

 

 

18 dezembro 2022

paulo campos dos reis / ceuta

 
  
Vinha com cara de pedir cigarros. Pediu.
Informei não ter. Fugiu.
Segui-lhe os passos. Um café.
Informou chamar-se Maria José.
Informei ser fumador.
Riu até ao útero.
Amámo-nos até ao cancro.
 
 
 
paulo campos dos reis
habilitações literárias
volta d´mar
2022
 



17 dezembro 2022

victor oliveira mateus / dos infernos múltiplos

 
 
que sabes tu do inferno alheio
da mágoa que se esconde
por baixo da mágoa que provoca
 
como reconheces um desespero
que não te pertence mas corrói
intenso inapagável
 
como apreendes (máscara
após máscara) outros viandantes
 
na digas nada
serena-te
os infernos são sempre individuais
 
aceita o que te calhou
e no fogo do grande ciclo
te vai norteando
sem que saibas como nem porquê
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021




16 dezembro 2022

josé amaro dionísio / solidão, sabe ela



 

3

Solidão, sabe ela, e é uma jovem mulher entre cortinas de vento. Rica, muito rica. E ainda bela, realmente bela – ah, mas estas rugas na pele. Se chora? Por vezes esse momento em que te levantas, vais à janela, vês a barbárie do tanque sob as nogueiras e concluis que tudo é tão inútil. O nascimento dos animais, por exemplo, hora reconciliada sobre que as cicatrizes poderiam folgar. Mas que acontece?
 
Apenas o tempo
 
 
 
josé amaro dionísio
eduardo batarda
a sombra do sangue
livro de artistas
europalia 91
1991


 

15 dezembro 2022

robert desnos / às cinco horas

  
 
Às cinco horas da manhã numa rua nova
e vazia ouço o ruído de um carro a afastar-se.
Um alarme de incêndio tem o vidro partido
e os pedaços resplandecem na valeta.
Na calçada está uma poça de sangue
e uma ligeira fumaça dissolve-se no ar.
Olá! Olá! Contem-me o que se passou.
Acordem! Quero saber o que se passou.
Contem-me as aventuras dos homens.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 




14 dezembro 2022

martín lópez-vega / roscoe

  
Os gansos cruzam o céu tocando a sua cómica trombeta,
os gatos gémeos brincam e ronronam,
as vacas tramam as suas filosofias
e o vento leva pensamentos estranhos.
 
– Noutro dia, e ainda estava a nevar,
ia a atravessar a rua
quando um murmúrio me chamou a atenção.
A árvore nevada estava cheia de pintarroxos
enroscados no camarim da primavera.
E dizem que quem vê o primeiro do ano
terá a sorte de feição. Pois eu vi-os a todos!
 
Ele conta como neste inverno
os cardeais vinham alimentar-se
no comedouro que pende do telhado
e o vento balançava-os
como crianças enregeladas sob a espessa neve.
 
«Sei que deveria. Mas não quero partir», repete.
Não sabe o exato dia
mas logo o seu lugar será outro.
 
Sabe quem cuidará do gado,
quem atenderá à colheita,
quem velará pelos gatos
e quem manterá a casa em pé.
Mas não é isso. Envergonha-o confessar
que são os gatos quem o guarda,
que é o gado que vela o seu sono,
que é a colheita o que põe ordem nos seus dias
e é a casa que cuida dele.
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de jorge melícias
officium lectionis edições
2022





13 dezembro 2022

louise glück / encruzilhada




 

 
Corpo meu, agora que não viajaremos juntos por muito mais tempo,
começo a sentir por ti uma renovada ternura, muito crua e
          desconhecida,
como aquilo que recordo do amor quando era jovem –
 
um amor que tantas vezes foi tolo nos seus objectivos,
mas nunca nas suas escolhas, nos seus ardores.
Demasiado exigido à partida, demasiado o que não pôde ser
          prometido –
 
A minha alma tem sido tão temerosa, tão violenta:
perdoa a sua brutalidade.
Como se fosse essa alma, a minha mão desliza cautelosa por ti,
 
não querendo ofender,
embora ansiosa, enfim, por conseguir expressar-se enquanto
          substância:
 
não é da Terra que irei sentir falta,
é de ti que irei sentir falta.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021



 

12 dezembro 2022

josé mateos / em breve cairá a noite

 



 
O tempo leva afectos e amizades
e um vento cruel corrompe os nossos sonhos.
Até que um dia, por fim, nos damos conta
de que estamos sozinhos.
                                     Nada, nem os livros
que principiam a falar quando os abrimos,
nem os versos que fomos despertando
para adiar e fugir do nosso rosto
enchem um vazio, formam uma pátria.
 
Em redor de nós é tudo simples,
ou assim parece: o pássaro na antena,
a nuvem anónima no céu luminoso…
Para nós, porém, crescem as sombras,
ninguém para nós acende a luz.
 
Sem esperança, sem fé outra tarde morre.
E é esse o disco riscado da vida,
o frouxo amor, a idade do desencanto.
 
 
 
josé mateos
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




11 dezembro 2022

maria do rosário pedreira / nada entre nós tem o nome da pressa

 



 

 

Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,
 
se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós
 
o tempo desenha-se assim, devagar.
Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.
 
 
 
maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002
 




10 dezembro 2022

miguel serras pereira / limiar

 
 
Não sei se volta a ti ou de ti parte
onde começa te começa ou traz enfim
a leve linha de altos choupos brancos
que lágrimas de ninguém estreitam ainda
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
corça 1982
barricada de livros
2022