Não tinha inimigos, não era incomodado por ninguém.
Por vezes criava-se uma vasta solidão na minha cabeça onde o mundo inteiro
desaparecia, voltando a sair intacto, sem um arranhão, sem nada em falta. Quase
perdi a visão quando alguém esmagou vidro nos meus olhos. Reconheço que esse
golpe me abalou. Senti que estava a penetrar o muro, a deambular num arbusto de
sílex. O pior foi a brusca e chocante crueldade do dia – não podia olhar nem
deixar de olhar. Ver era aterrador, deixar de ver dilacerava-me da testa à
garganta. Para além disso, ouvia gritos de hiena, o que me expôs à ameaça de um
animal selvagem (esses gritos, acredito, eram os meus).
maurice
blanchot
a loucura do
dia
trad. ricardo ribeiro
sr teste edições
2021